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domingo, 4 de abril de 2010

Nossa montagem de ESPERANDO GODOT é um estudo sobre o ERRO - Parte1/2

O mote deste exercício (?) será o de escrever sobre aquilo que consideramos se tratar o estudo que estamos empreendendo com esta montagem de GODOT. No último ensaio, eu e as quatro atrizes fechamos aquilo que para cada um essa montagem poderia se dedicar a estudar. Não sei exatamente o porquê, mas a palavra ERRO saltou da minha boca e roubou o espaço da palavra TENTATIVA. Mas como foi um roubo assim de súbito, de repente, vou jogar com o ERRO. Amá-lo.

O objetivo deste exercício que será apresentado por mim e pelas quatro aqui no blog é discorrer sobre esta palavra (no meu caso, ERRO) tendo como ponto de partida a encenação da Cia. dos Atores dirigida por Enrique Diaz, ENSAIO. HAMLET, que nos inspira e intriga bastante. Dessa forma, elegi esta montagem para lançar um olhar que, em seguida, voltará por sobre o nosso material. Vamos primeiro olhar o redor.

Nossa montagem de ESPERANDO GODOT é um estudo sobre o ERRO - Parte 1

Seleciono algumas leituras sobre o tema encontradas na internet. No wikipedia, Erro é um vício no processo de formação da vontade, em forma de noção falsa ou imperfeita sobre alguma coisa ou alguma pessoa. Essa é uma leitura jurídica sobre a palavra. Erro é um substantivo (er.ro) que quer dizer engano, incorreção, equívoco. Do latim: error, oris. Enquanto o anagrama da palavra nos devolve Roer. O que vou dizer com este estudo é: o erro é essencial, ele nos serve para alguma coisa.

Nesta encenação a partir de Hamlet, de William Shakespeare, partimos do título: trata-se de um ensaio a partir da obra máxima do dramaturgo. O que é um ensaio a não ser um processo de repetição, de tentativas, de busca? Um ensaio é um meio encontrado para testar se algo convém ao objetivo final. Com ENSAIO. HAMLET o que se está em jogo - em teste - são possibilidades para se encenar - se contar - esta história, a história de Hamlet.

De imediato eu fico preso à palavra ENSAIO como meio, caminho, possibilidade, tentativa. Em seguida, junto a palavra ERRO e percebo como a busca, como o ensaio nos confronta com o erro e que é justamente a partir deste encontro que temos a clareza se aquilo convém ou não à encenação. O erro é a resposta mais sincera. A partir dos erros - sucessivos - poderemos ter alguma medida. Ao contrário do que possa parecer, o erro nos serve. Ele é essencial.

Mas se erra em contraponto a quê? É preciso ter claro uma norma, um modelo, uma forma para que possamos nos julgar errados ou não em relação a mesma, não? Por exemplo, em ENSAIO. HAMLET sinto que o contraponto ao erro somos nós, espectadores, somos nós, seres da história, seres presos ao contexto, seres menos livres que as personagens. Seres do tempo. Compreendem? Em nós os modelos, as formas, os jeitos, o "como deve ser feito" está mais arraigado do que a realidade do ator, da personagem. É ridículo, mas ao ver os atores já vestidos de seus personagens (o que é isso?), como poderiam então conversar com o público, distraídos, dispersos, naturais? Isso não seria um erro?

Veja bem, não quero dizer o que acho ter sido certo ou não. Não se trata disso. Mas foi um primeiro exemplo de alguma coisa que gritou em mim. O erro está em nós, que assistimos. O sofrimento será o nosso. Pois teremos que lidar com todos os reajustes e modificações que a encenação nos reivindica. Parti de um exemplo bobo. Vou tentar chegar onde quero chegar. Mas é inevitável: errarei bastante no decorrer deste caminho.


A noção de erro em ENSAIO. HAMLET é usada para contar a história. Um trecho que poderia ser exposto rapidamente, ser contado em algumas falas, quando colocado no lugar do erro, quando nos é lançado via ERRO (erro como ferramenta), parece ganhar mais tempo em cena, mais tempo para se desenvolver. A primeira aparição do fantasma do pai de Hamlet é desacreditada, é posta como equívoco, como delírio vivido por Hamlet. A encenação nos mostra a cena, o personagem nos descreve o que aconteceu e um ator/personagem surge e diz não acreditar. Ele desacredita. Invalidando os esforços anteriores. Como se dissesse: está errado, não é assim, isso é um erro, não vale, não rola... Em seguida, dotando-se de nova força, a encenação se refaz, volta ao erro e o fornece com ainda mais energia e vitalidade. O erro começa a ser concreto. Ganhamos mais intimidade, tocamos suas partes, seu conteúdo, assimilamos sua forma. Já não duvidamos tanto dele, porque por meio dele desbravamos a nossa incompreensão e seguimos, querendo mais, querendo entender tudo mais um pouco.

Em relação a quê? Vem o livro de Shakespeare e nos diz, aconteceu isso e aquilo. Isso e aquilo que antes não aconteceu - erramos. Isto e aquilo que não aconteceu antes mas que agora acontece. Compreendem? Erra-se pelo prazer de ser desmanchado. Erra-se para ser dissecado e discutido e desejado. O erro é forjado justamente para que vendo nossa cara de duvidosos, tenhamos motivo para dizer: venham aqui comigo que eu vou lhes fazer compreender. E assim, novas cenas surgem para desenhar aquilo que não nos é entregue digerido já no começo. Digestão. Ao invés de encenação.

A iluminação quebra muito rapidamente o lugar do erro e abre o espaço do ensaio, que havia se perdido (se encontrado) na encenação. A luz que expõe cada canto, cada tentativa, ela é ferramenta da ilusão, ferramenta que assegura o erro, que impulsiona o erro, que o esconde e revela. Assim como um gesto, capaz de instaurar um provável erro dramático. Hamlet é estapeado por seu tio Cláudio (Claudius). O gesto alimenta o conflito que já estava inevitavelmente instalado. O gesto é um erro, que assegura a continuidade. Forçado? Sob qual ponto de vista o tapa de Cláudio é um erro? Sob qual ponto de vista é um acerto?

Então Hamlet ou Marcelo Olinto nos narra a sua história do texto de Hamlet. Ele nos conta o erro que os gerou. A situação. O pai morto. O tio, agora no poder, rapidamente se casa com sua mãe, a então viúva Gertrudes. E o fantasma do pai revela ter sido assassinado por Cláudio. Sobre a morte. O ator César Augusto revela: nove pessoas morrem neste espetáculo. São menos atores do que os corpos que serão abatidos. Fernando Eiras afirma, parece que a gente nunca chega no Shakespeare. É o espaço do erra-vagar, de Blanchot, o espaço da errância, da busca, da tentativa. Enquanto Eiras nos conta um relato pessoal (será verdade? importa?), a cena vai se organizando e o interrompe, presentificando o relato, tornando a experiência relatada em algo posto em cena, ainda que encenado. Acontece ali. Sob nossos olhos. Decorre nu. Pleno-tempo.

Ainda é Eiras quem diz, eu queria tanto... E a cena seguinte o soterra, sugerindo outra possibilidade para aquele querer que nem foi dito. A cena seguinte soterra a anterior. São tentativas, não importa sentar e debater se servem ou não. As tentativas juntas acabam dizendo o todo que talvez não pudesse ser dito com uma única voz, nem mesmo num único corpo. Por isso são tantas Ofélias, tantos Hamlets. E tanto nem é muito nem é pouco. Tanto quer dizer necessidade.

Outra sensação que tive foi a de como o erro que é capaz de tragar. Errar torna-se sedutor porque já exclui de imediato a necessidade de acertar. Pois se eu vou errar, pois se errar me é permitido, pelo menos que seja lindo e leve e pesado e divertido. Que eu possa chorar e se não conseguir, que eu possa não conseguir. A atriz Bel Garcia olha para a dificuldade em interpretar Ofélia com dúvidas. Ela duvida da personagem, de suas motivações, mas é como diz, como atriz não se pode ser avessa à realidade de sua personagem. E é nesse ladainha do descontentamento, da dificuldade, que de súbito a atriz assume o corpo juvenil e chato de Ofélia, manhosa e amorosa e melosa e ultrapassada. O erro - ou, pelo menos, aquilo que a atriz considerava desapropriado - serve. Ponto. E vai deixando - o erro - seus rastros: sujeira, bagunça, caos, risco, giz.

Ele tira a roupa. Ele expõe. Ele é engraçado. Ele é combustível. Catalisador. O erro nos faz persistir um tempo maior sobre uma determinada questão. O erro desenvolve pois é reflexo claro e impreciso da obstinação humana por sobre aquilo tudo que a avassala, que a desautoriza. É interessante observar como os atores voltam tantas vezes ao texto de Shakespeare. Mais do que voltar ao original para ver o que é certo, me parece, os atores voltam à HAMLET para se reconhecerem errados, vivos, na busca. Em repetição. Em repetítion. Em ensaio.

Abre-se o espaço metalinguístico. O espaço do teatro que trabalho o teatro e que fala dele e que dele se utiliza para se dizer. E quem diz isso antes de todo e qualquer encenador é Shakespeare, que permite a Hamlet um meio para desmascarar seu tio: o teatro (no teatro). Quer dizer, Hamlet encenará diante de seu tio e sua mãe a realidade concentrada. Dentro da peça - e só nós sabemos - outra peça se abre para ressaltar os erros que até então não tinham sido vistos, ou que suspeitamos, tenham sido escondidos. A peça para explodir a consciência do rei.

Em breve, mais a partir do segundo ato.

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ENSAIO. HAMLET
de William Shakespeare
Elenco | Bel Garcia / César Augusto / Felipe Rocha / Fernando Eiras / Malu Galli / Marcelo Olinto
Direção Geral | Enrique Diaz