\\ Pesquise no Blog

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Pesquisando...

                
 
  





                   

o diretor é neblina

                  
a encenação lucidez.
                                  

0.

               
Quem espera sempre alcança.
Provérbio ou ditado popular.

Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário,
é que é propriamente o sentido da absurdidade.

Albert Camus em O Mito de Sísifo.

Godot amava Godot que amava Godot
que amava Godot que amava Godot que amava Godot
que não amava ninguém.
Godot foi para os Estados Unidos, Godot para o convento,
Godot morreu de desastre, Godot ficou para tia,
Godot suicidou-se e Godot casou com Godot
que não tinha entrado na história.

Livre apropriação do poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.
               

1. APRESENTAÇÃO - Parte I

            
Ou aquilo que solicita atenção em mim.

Para iluminar esse processo particular de provocação na platéia, devemos nos afastar do trampolim representado pelo texto, e que já está sobrecarregado de um sem-número de associações gerais. Para isto, precisamos ou de um texto clássico, ao qual, através de uma espécie de profanação, restituímos ao mesmo tempo sua verdade, ou de um texto moderno, que pode ser banal e estereotipado no seu conteúdo, mas apesar disso enraizado no psiquismo da sociedade (Grotowski, 1987).

Pois eu escolhi um texto “clássico” para minha montagem de Direção VI. Desde muito cedo esta disciplina me pareceu o momento propício para o trabalho sobre uma boa dramaturgia, de certa forma conhecida e principalmente já muito testada em encenações diversas. A minha noção de clássico aqui diz respeito unicamente ao tempo de vida da obra. E eu queria uma obra que já tivesse um tempo agregado a ela, algum histórico, certo passado. Assim, depois de passar por A GAIVOTA de Anton Tchekhov, acabei escolhendo a Samuel Beckett e seu ESPERANDO GODOT (1949).

O primeiro pensamento em relação a montar GODOT surgiu quando conversava com amigos após assistirmos a uma montagem da peça HAMLET. MACHINE, de Heiner Muller, em 2009 no Rio de Janeiro. A nossa discussão após a peça enveredou para a busca de um motivo que justificasse uma montagem teatral, especulávamos sobre a necessidade do teatro hoje.

No meio da conversa, um dos presentes expôs seu encantamento com aquela que dizia ser a obra mais suprema da dramaturgia universal: ESPERANDO GODOT. Lembro-me que reagi ao comentário e afirmei, intuitivamente, que a primeira coisa que faria caso montasse GODOT hoje seria fazê-lo chegar, afinal, já não me parecia mais ser possível esperar por algo que desde sempre esteve predestinado a não chegar.

Confesso que até então eu não havia lido a peça. Terminei de ler ESPERANDO GODOT, pela primeira vez, em dezembro de 2009. E eis que muito do que eu ouvira falar da tão famosa obra de Beckett se revelou a mim com extrema clareza e energia. GODOT coloca em questão muitas demandas que eu também considero minhas, sobretudo, uma reivindicação do caráter naturalmente complexo do ser humano, num gráfico onde se alternam com estranha delicadeza o cômico e o trágico, assim como me parece ser a própria vida. Eu havia encontrado um texto que dizia da sua maneira aquilo que ainda hoje eu não consigo dizer por si só. Foi um encontro. Desses que só o teatro parece capaz de viabilizar.

Este projeto parte, então, do meu desejo em experimentar o texto de Beckett a partir do que ele fez reverberar em mim. O meu esforço é mesmo o de profanar sua obra, reafirmando Grotowski, ao lançar por sobre ela um olhar pessoal que busque, antes de tudo, revelar se seus valores já reconhecidos podem também se tornarem valores para mim. Quero tocar em ESPERANDO GODOT e revelar da obra tudo aquilo que ela mesma solicitou atenção em mim.
           

1. APRESENTAÇÃO - Parte II

   
O diretor como espectador de profissão.
(nome de um artigo escrito por Jerzy Grotowski)

Há uma intuição amorfa que é minha relação com a peça. Estou convencido de que esta peça precisa ser feita hoje, e sem esta convicção não posso fazê-la (Brook, 1995).

Em 2007 tive contato, pela primeira vez, com o conceito de intuição amorfa desenvolvido por Peter Brook e colocado em questão pela professora Joana Lebreiro na disciplina Direção III. Lembro-me que neste momento comecei a ter clareza de que aquilo que eu viria a produzir como diretor teatral, independente do ponto de chegada, partiria sempre de um ponto de vista particular. Foi quando passei a dar mais atenção às minhas intuições e a pensar com mais cuidado sobre o espectador, aquele ao qual eu destinaria a minha produção. 

No final de 2008, ao começar os estudos para a montagem de Direção V sobre o texto PASO-DE-DOS (do dramaturgo argentino Eduardo Pavlovsky, cuja estreia aconteceu em dezembro de 2009), me deparei com a noção de inconsciente coletivo. Na obra Em busca de um teatro pobre, Grotowski afirma: para que o espectador seja estimulado a uma auto-análise, quando confrontado com o ator, deve existir algo em comum a ligá-los, algo que possa ser desmanchado com um gesto, ou mantido com adoração. Portanto, o teatro deve atacar o que se chama de complexos coletivos da sociedade, [...] aqueles mitos que não constituem invenções da mente, mas que são, por assim dizer, herdados através de um sangue, uma religião, uma cultura e um clima (Grotowski, 1987). 

Estimulado pelos escritos de Grotowski, desenhei uma função de que a obra de arte deveria ser capaz de gerar em quem se relaciona com ela alguma autonomia crítica. Para isso, seria inevitável um encontro entre obra e espectador. Fui então pesquisar sobre o inconsciente coletivo a fim de esclarecer aquilo que, depois vim a descobrir, Jung teria dito ser sedimentos de experiências constantemente revividas pela humanidade (Jung, 2008). Ora, se minhas montagens se destinavam ao outro, talvez eu devesse buscar entender alguma lógica provável sobre o outro. E, logo, optei que meus exercícios de direção se tornassem embates vivos, já que pelo encontro me parecia ser possível evocar no espectador algum esforço individual de compreensão. Mais que isso: evocar no espectador sua(s) maneira(s) de lidar com a obra e, inevitavelmente, sua(s) forma(s) de ler o mundo. 

Acabei achando tudo isso pretensioso demais. Mas algo me dizia que era isso sim. Dessa forma, a melhor maneira de encontrar clareza foi se jogando em meio à escuridão. Fui com minha Direção V experimentar estas intuições por sobre um texto que apresentava uma situação de violência e dependência entre um homem e uma mulher, entre um torturador e uma torturada. Em processo, chegamos a um ditado popular que assegurava em si justamente uma leitura que eu desejava relativizar, a fim de tirar seu posto de verdade universal e configurá-la, naturalmente, como uma possibilidade e não mais como fim, inevitabilidade. 

A expressão “quem cala consente” é vista por mim como uma dessas heranças apontadas por Grotowski. Ainda me soa ingênua, mas creio que se inscreva no âmbito do inconsciente coletivo, pois se configura como uma lógica já instituída e propagada, mesmo que sequer tenha sido compreendida por quem a divulga. Com a encenação de PASO-DE-DOS – que acabou sendo chamada de NÃO DOIS – construímos uma representação que se esforçava em tornar ruidosas algumas leituras já enraizadas em nosso psiquismo, como a de que o homem é sempre o agressor e a mulher sempre a vítima. Eu não queria mais os rótulos de torturador e vítima. Eu queria investigar uma construção de personagens que procurasse o seu caráter genuíno, complexo. Ou seja, como haviam se tornado aquilo ali pelo o qual estavam sendo julgados e classificados (torturador e torturada; homem e mulher). O meu esforço foi o de escrever, pela encenação, a expressão “nem sempre” dentro da construção “quem cala consente”. Como se quisesse dizer que quem cala – nem sempre – consente. Como se quisesse dizer que a vida persiste em espaços muitas vezes complexos de serem ditos e/ou tabelados. 

E agora com ESPERANDO GODOT eu poderei dar continuidade ao que foi iniciado. Parto de outro provérbio que desta vez prega que “quem espera sempre alcança”. Porém, agora, desejo jogar de outra forma. Se em NÃO DOIS eu contrapus a imagem – encenação – ao que estava inscrito no inconsciente (“quem cala consente”), desta vez eu quero que a encenação assegure o que o ditado repete e instaura em nós: o fato de que quem espera acaba, inevitavelmente, por alcançar sua espera. Porém, com a dramaturgia de Beckett, temos em mãos um texto que “defende” a espera e anula a possibilidade da chegada. Sendo assim, é justamente pelo embate entre texto e encenação que pretendo problematizar essa impossibilidade da chegada. Será mesmo que não é possível que aquilo desejado chegue? 

O embate, mais uma vez, torna-se necessário para que se descubra – por nós, neste momento – o valor da espera, quais são suas qualidades e como ela se movimenta. No final das contas, descobriremos, já não importa Godot chegar. Importa atentarmos para o ser humano como um ser fadado a uma incessante busca por preenchimento – esta sim – difícil de solucionar.
                   

2. Sobre Samuel Beckett e sua peça ESPERANDO GODOT

                   
“Samuel Beckett, o irlandês nascido em Foxrock, subúrbio abastado de Dublin, em 1906, e morto em Paris, há 20 anos. [...] Difíceis e desconcertantes, drama e prosa do autor de Esperando Godot recusam a acomodação de suas tensões internas em pares conceituais antípodas como otimismo/pessimismo ou realismo/absurdo (Andrade, 2010). “A linguagem nas peças de Beckett serve para expressar o desmoronamento, a desintegração da linguagem. Onde não há certeza não pode haver significados definidos. (Esslin, 1968). “Um dos pomos da discórdia da crítica beckettiana continua a ser a importância que se atribui a este mítico niilismo e à busca por alguma positividade na obra do ganhador do Nobel de Literatura de 1969” (Andrade, 2010). “Solidão, sofrimento, fracasso, angústia, absurdo da condição humana e morte – são os temas maiores beckettianos, com os quais se associam outros mais... [...] Reflexo do homem do século XX, aniquilado pelos anos de guerra e pela ciência nova que destruíram a fé em sistemas racionais, filosóficos ou políticos" (Berrettini, 2004).

Esperando Godot de 1948 – peça nova, de ruptura, colocando o público diante de situações dramáticas insólitas e sua linguagem surpreendente, pois enquanto esperam Godot que não vem, suas personagens, tais palhaços com suas falas acompanhadas de números de circo ou de music hall, [...] falam da miséria do homem, do absurdo da condição humana, das dificuldades do homem moderno” (Berrettini, 2004). “O assunto da peça não é Godot, mas a própria espera, o ato de esperar como um aspecto essencial e característico da condição humana [...] e Godot representa tão somente o objetivo de nossa espera – um acontecimento, uma coisa, uma pessoa, a morte” (Esslin, 1968).

“A linguagem falha e as falas iniciadas a contragosto e difíceis de estancar passam a ser a aposta beckettiana no pós-guerra, corroendo por dentro convenções dramáticas e materializando-se em imagens insólitas. [...] Tais aspectos estão presentes, por exemplo, no choque inicial de Esperando Godot, reiterado em Fim de Partida e Dias Felizes” (Andrade, 2010). “O uso que Beckett faz da linguagem é um ataque à complacência fácil e barata dos que acreditam que falar de um problema é resolvê-lo, que o mundo pode ser dominado por classificações e fórmulas bem arranjadas” (Esslin, 1968).

“A noção de drama, como conhecemos tradicionalmente, conta uma história, normalmente marcada por um ou mais conflitos, que são a base primordial para a ação da peça e revelação dos personagens. Samuel Beckett corajosamente rejeitou esta idéia, fazendo da inação o seu foco, dizendo-nos, já pelas primeiras palavras da peça, ‘Nada a fazer’. [...] Beckett está lidando com equilíbrios, com gráficos. [...] A estrutura dos dois atos da peça, com cada ato parando com Didi e Gogo na posição congelada. (Um terceiro ato geralmente resolve alguma coisa). [...] Vladimir perto do pensamento (cabeça ou chapéu) e Estragon mais perto do corpo (pés ou bota), Pozzo o mestre e Lucky o escravo, dois meninos mensageiros (ou são eles o mesmo garoto?), dois ladrões presos à cruz. O equilíbrio informa o modo de apresentação, a fusão entre artifício e realismo, comédia e tragédia. Essa estratégia de balanços empurra a platéia para dentro de uma atmosfera de incerteza. Sua palavra favorita, disse Beckett uma vez, é ‘Talvez’” (Massachusetts Review).
                 

Qual é a EMBRIAGUEZ de GODOT?

           
"
8.
Da Psicologia do Artista. Para que haja a arte, para que haja uma ação e uma visualização estéticas é incontornável uma precondição fisiológica: a embriaguez. A embriaguez precisa ter elevado primeiramente a excitabilidade de toda a máquina: senão não se chega à arte. Todos os modos mais diversamente condicionados da embriaguez ainda possuem a força para isso: antes de tudo, a embriaguez da excitação sexual, a mais antiga e originária forma da embriaguez. Da mesma forma, a embriaguez que nasce como conseqüência de todo grande empenho do desejo, de toda e qualquer afeto intenso; a embriaguez da festa, do combate, dos atos de bravura, da vitória, de todo e qualquer movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez na destruição; a embriaguez sob certas influências metereológicas, por exemplo a embriaguez primaveril; ou sob a influência dos narcóticos; por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade acumulada e dilatada. - O essencial na embriaguez é o sentimento de elevação da força e de plenitude. A partir deste sentimento nos entregamos às coisas, as obrigamos a nos tornar, as violentamos. – Denomina-se esse evento como uma idealização. Desprendamo-nos aqui de um preconceito: o idealizar não consiste, como geralmente se pensa, em uma subtração e uma dedução disto que é pequeno e secundário. O que é decisivo é muito mais uma monstruosa exaltação dos traços principais, de modo que os outros traços pertinentes se dissipam.
9.
Neste estado, tudo se enriquece a partir de sua própria plenitude: o que se vê, o que se quer, se vê dilatado, cerrado, forte, sobrecarregado com a força. O homem que se encontra nesse estado transforma as coisas até elas refletirem sua potência: até elas serem o reflexo de sua perfeição. Este ter de transformar em algo perfeito é - arte. Tudo mesmo o que ele não é, vem-a-ser apesar disto para ele prazer em si; na arte, o homem goza de si mesmo enquanto perfeição. [...]
"

Trecho do capítulo INCURSÕES DE UM EXTEMPORÂNEO, integrante do livro CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS de F. NIETZSCHE. Grifos meus.
                    

3. JUSTIFICATIVA - Parte I

           
Ou a necessidade de montar Beckett agora.

O que fundava a realidade, sua marca, é que ela era insatisfatória e, então,
sempre representativa da falta que a fundava como realidade. Essa falta é, doravante,
relegada a puro acidente, a uma insuficiência momentânea, circunstancial,
e é a imagem perfeita, outrora ideal, que se tornou realidade (Melman,
2008).

Com ESPERANDO GODOT, pode-se dizer, Beckett nos proporciona uma dramaturgia carregada dos impasses do pós-guerra. A fragmentação da linguagem, a imobilidade e a situação de espera na qual os personagens estão inseridos podem ser lidas facilmente pela ótica de angústia e destruição posterior à guerra, numa construção tão contraditória como a própria vida parecia destinada a ser.
 
Beckett nos sinaliza a destruição dos valores humanos e constrói personagens que diante da ausência e o vazio de valores encontram-se titubeantes diante das possibilidades. Eles podem tanta coisa – incluindo a morte –, que optam pela espera de alguém que os possa salvar. E nesse tempo da espera transcorrem jogos entre as personagens que sugerem, explicitamente ou não, meios encontrados pelo homem para lidar com a falência da busca por algum sentido a sua existência.

Avançando do contexto pós-guerra para este de agora, ou seja, para o final da primeira década do século XXI, eu me pergunto o que possa ter acontecido de lá para cá. O que o ser humano foi capaz de erguer, o que mais foi capaz de tombar? Penso sobre o que possa significar esse ato de espera das personagens de ESPERANDO GODOT e intuo como esta noção está alterada hoje.
 
A destruição provocada pela guerra exigiu inúmeras reconstruções. Em inúmeras frentes – e ciências – o homem se dispôs a procurar explicações para a experiência tão paradoxal que havia se tornado sua vida. É fundamental apontar como a máquina capitalista se fortaleceu ao financiar tanto a guerra como a reconstrução do que ajudou a destruir. A lógica do capital se revela como a principal produtora e vendedora de todo e qualquer sentido que pudesse validar nossa existência. Pela produção e consumo de bens variados o homem moderno passou a ter acesso a tudo àquilo que a guerra havia alavancado de sua existência. O sentido de uma época expresso em imagens e signos, representações e artifícios que assegurassem a aparência de algum conforto, a ilusão de alguma segurança e identidade possíveis.

É preciso tocar nas mudanças ocorridas de 1950 até agora para recontextualizar GODOT. Mudanças desejadas e empreendidas muitas vezes com o intuito de tornar os indivíduos em sociedade capazes de abdicarem da dura realidade. Mudanças geradas para situar o homem de um mundo destruído num outro construído, redesenhado por aparências e consumos (de fatos, notícias, produtos, mercadorias...).

E tudo isso já havia sido pré-anunciado por Beckett. Em seu estudo O teatro do Absurdo, Martin Esslin afirma que a rotina de esperar Godot representa o hábito que nos impede de alcançar a consciência dolorosa, porém fértil, da plena realidade da existência (Esslin, 1968). A busca, então, pela salvação acaba sendo, em última instância, uma evasão do sofrimento e da angústia humana que nascem, inevitavelmente, do contato e confronto com a realidade de nossa condição.
                       

3. JUSTIFICATIVA - Parte II

         
Da sociedade do espetáculo à presentificação dos desejos. 

O espetáculo – diz Debord – consiste na multiplicação de ícones e imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas também dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à vida real do homem comum [...] – tudo transmite uma sensação de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. O espetáculo é a aparência que confere integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida (Júnior, 2001).

A partir da década de 70, pode-se dizer que a linguagem do comércio e da mercadoria se dissemina ainda mais. A humanidade se vê refletida num reflexo “melhorado” de si mesma, onde a fragmentação que antes era um ônus da experiência com as guerras, converte-se num elogio à heterogeneidade e à diferença, valorizando a emergência de estilos de vida variados e, inevitavelmente, uma sempre nova e constante produção de signos e imagens.

É em meio ao incessante surgimento de novas imagens e signos, que o pensador francês Guy Debord apresenta a sua noção de sociedade do espetáculo, numa forte contestação contra a perversão da vida moderna, que preferia a imagem e a representação ao realismo concreto e natural, a aparência ao ser, a ilusão à realidade, a imobilidade à atividade de pensar e reagir com dinamismo (Debord, 1997). Para Debord, a vida moderna dá início a um processo de substituição da realidade por aparências de uma realidade outra que possa soar menos contraditória e dolorosa ao homem, tornando as relações humanas meras imagens e espetáculos.

Levando ainda mais adiante a leitura de Debord, o psicanalista francês Charles Melman, por uma sutil e determinante diferença, aponta que ao invés de representação, o homem deste início de século XXI é gerido pela noção de presentação. Estamos no exato ponto do abandono de uma cultura, ligada à religião, que obriga os sujeitos ao recalque dos desejos e à neurose, para nos dirigir a outra em que se propagandeia o direito à expressão livre de todos os desejos e à plena satisfação deles (Melman, 2008).

É a partir desta diferenciação, a saber, a indisposição do homem atual em relação à espera – ou em relação a não satisfação dos desejos, dos encontros, de toda e qualquer forma de saciedade –, que creio ser possível validar a necessidade da chegada de Godot. A nossa noção de espera foi alterada, no entanto, nossa espera não foi exterminada. Ao que me parece, quanto mais buscamos certa saciedade, mais nos descobrimos famintos, mais nos revelamos porto para novos desejos.

Parto, então, desta abordagem e volto ao original de Beckett. Em ESPERANDO GODOT, o dramaturgo mais uma vez nos fala pelo essencial, desenhando com extrema precisão a busca do ser humano pela satisfação e pela completude. Para mim, é importante reconhecer como esta busca também nos leva ao fim, sendo o fim o ponto final dado a qualquer desejo, a qualquer fome de vida. De certa forma, espero conseguir revelar que hoje, diferentemente de antes, contemplamos nossos desejos com extrema velocidade. E, assim, tão rápido os saciamos, tão mais rápido nos tornamos alvos de novas vontades. É, como em Beckett, um ciclo sem fim. Um ciclo sem arremate.
           

3. JUSTIFICATIVA - Parte III

              
Até quando começarmos a entender que o desejo será sempre insaciável.
  
Puro, profano, livre dos nomes sagrados, é o que é restituído ao uso comum
dos homens (Agamben, 2007).

No tópico anterior do presente projeto, no qual apresentei – não ao acaso – uma série de citações sobre Samuel Beckett e ESPERANDO GODOT, vislumbrava justamente expor uma leitura do autor e de sua obra que partisse de uma constelação de leituras já lançadas por sobre ambos. Foi importante criar este contraponto, para que eu pudesse compreender o que exatamente em Beckett e em seu GODOT me tocam.

Em primeiro lugar, para mim, esta obra ocupa uma série de lugares e categorias e opiniões com as quais eu não tenho condição de lidar, pois me chegaram já prontas, quando para mim, o importante num processo artístico é justamente a descoberta, a surpresa das revelações. Ao montar GODOT agora, movido pelo desejo de profanação, o que quero é principalmente destituir a obra dessa esfera inconsciente que a enclausura e classifica, reduzindo a grandiosidade do texto de Beckett. Será um esforço de passar GODOT deste domínio inconsciente para outro mais concreto e tangível, tocante a minha pele e a de toda a equipe. Queremos redescobrir GODOT, independente se este processo venha a validar ou não tudo o que já foi dito. O que importa é percorrer o caminho com nossas próprias pernas.

Em seguida, é um esforço de profanação alimentado por uma busca da essencialidade. Em virtude de um sem número de estudos e opiniões feitas, GODOT chegou primeiro a mim não pela obra, mas pela fama. Eu fui, entre aspas, privado do meu contato com a obra. Eu, mesmo antes de ler a obra, já a sabia, já detinha informações e mesmo certa intimidade sobre suas situações e personagens. Este projeto, então, quer expor um processo de descoberta desta obra feito pelo embate dos artistas com esta obra. Quer ser este projeto – nele mesmo – a obra e o encontro com ela.

Cabe ressaltar que falar do meu desejo de fazer Godot chegar não implica em construir uma encenação na qual um ator surgirá como se fosse Godot. Por tudo já dito e desenvolvido neste projeto, creio que tenha ficado claro que o que se espera não é necessariamente um Godot personificado, mas toda e qualquer presença que venha a saciar algum desejo. Seja isso por meio de imagens objetos ações danças músicas gestos lembranças etc.

Por último, quando assinalo a idéia de profanação, ressalto uma ambigüidade inerente à palavra exposta por Giorgio Agamben. Ele diz que os filósofos não cansam de ficar surpreendidos com o dúplice e contraditório significado que o verbo profanare parece ter em latim: por um lado, tornar profano, por outro – em acepção atestada só em poucos casos – sacrificar (Agamben, 2007). Dito isso, parece-me mais claro visualizar um processo de profanação da obra, como fosse esse mesmo uma série de aproximações e afastamentos do original. Um movimento ininterrupto que assegure chegadas e pequenas esperas, e mais chegadas e outras esperas, para revelar que sim, somos seres fadados à incompletude, bem como assinalou Beckett com ESPERANDO GODOT.

4. DRAMATURGIA


Sobre o processo de adaptação do texto.

O trabalho de adaptação do original de Beckett parte essencialmente da necessidade de um texto que caiba na duração de uma hora permitida pela disciplina em questão. A tradução usada é a de Fábio de Souza Andrade, publicada pela editora Cosac Naify na última tradução em língua portuguesa lançada no Brasil.

No entanto, mais do que reduzir o número de páginas, o objetivo principal da adaptação está sendo o de realizar um ato que seja fruto da costura entre os dois atos da obra original. Cabe antes ressaltar que tanto a adaptação quanto o trabalho de levantamento das cenas pretendem ser intransigentes ao máximo frente às mudanças textuais, já que um dos objetivos deste projeto é justamente o confronto com um clássico da dramaturgia universal.

Os dois atos de GODOT são muito semelhantes. Passam sempre por uma ordem muito parecida de acontecimentos. A escolha, então, foi manter as situações e a essencialidade das rubricas para, em seguida, realizar alguns cortes e selecionar trechos de forma a construir um gráfico dramático que sirva à encenação.

A adaptação será concluída até o término da primeira quinzena de março, quando terão início os ensaios.
    

5. ENCENAÇÃO - Parte I

 
Quatro atrizes em busca de uma encenação. 

A imaginação é este operador por meio do qual o ator se transporta para a imagem e afeta, na apresentação da imagem, a atividade de seu corpo, de sua vida. Movimento ininterrupto de ida e volta: de transferência (imaginária) para o papel e de reconversão da imagem assim investida de efetividade dramática, cênica (Guénoun, 2004).

Com a progressão de suas obras, Beckett vai investindo cada vez mais num embate com a linguagem, travando uma luta incessante com as palavras e sua pretensão de significado e classificação. Em peças como ESPERANDO GODOT, FIM DE PARTIDA e DIAS FELIZES, é possível notar como que uma discussão e prática sobre a ferramenta vão se intensificando. Ao ler GODOT pela primeira vez, foi inevitável não ouvir os dois personagens principais falando também sobre a sua condição enquanto parte de uma obra.

Minha encenação deseja, então, investir naquilo que me fascinou de imediato: a reflexão e a prática sobre o código que dá sustentação à obra. Desejo investigar o conjunto de signos usados para expressar a fábula de Beckett. É a linguagem de GODOT o nosso objeto de experimentação e análise. A incompreensão das personagens, suas angústias, além de humanas, são para nós também criacionais. O absurdo não somente do homem, mas também do artista.

Como primeira proposição concreta desta busca escolho trabalhar com quatro atrizes. A opção pelo sexo feminino afasta de imediato uma provável identificação com os personagens de GODOT, situando as atrizes num espaço reconhecidamente artificial, num contexto em que tal identificação virá não pela aparência de alguma caracterização, mas por vias mais essenciais, pelas quais as atrizes experimentarão intensamente os sentimentos que sustentam a vida de seu papel.

Enquanto a dramaturgia de Beckett nos oferece uma situação de espera na qual Vladimir e Estragon têm sua angústia existencial exposta, com a encenação eu pretendo algum outro jogo que possa se encontrar e se afastar do jogo dramatúrgico. Se o que nos move é o desejo de recontextualizar, de redescobrir que espera é essa anunciada por Beckett, dessa forma o jogo da encenação se converte também num exercício de espera. Exercício no qual as quatro atrizes multiplicam a angústia existencial de Vladimir e Estragon pela sua angústia criacional – aquela com a qual nos deparamos inevitavelmente ao construir uma encenação teatral.

O que se espera, podemos dizer, é algum encontro possível. O teatro é um espaço cuja existência é dada em função de alguns encontros que nele se operam. Logo, podemos dizer que esperamos o teatro, sendo este próprio o ato de encontrar. A partir disso, voltamos ao desejo de assegurar chegadas, ao mesmo tempo em que nos encontramos imersos num mar de esperas. Construir uma obra de arte é encontrar e perder, é fazer chegar e ver partir novamente. Enquanto os personagens buscam/esperam GODOT, as atrizes buscam/esperam pela encenação de GODOT.
               

5. ENCENAÇÃO - Parte II

             
Imagens em jogo: metalinguagem.

O jogo será, portanto, o campo da ação teatral, o que não suprime o personagem, mas o ordena segundo uma lógica diferente da identificadora (Guénoun, 2004).

A partir de toda fundamentação apresentada e desenvolvida neste projeto, posso dizer que a encenação será desenvolvida a partir do cruzamento de três vértices determinantes: IMAGEM, JOGO e METALINGUAGEM.

IMAGEM – Neste contexto, a imagem é a linguagem da escrita cênica. Escrita que entrará em embate com a escrita dramatúrgica, embate entre imagens e palavras. Além disso, pensar a imagem a partir da discussão proposta por Debord, no sentido de ser a imagem um artifício, uma fuga aparente do real;
JOGO – O jogo como mecanismo pelo qual se articulam os mecanismos da encenação. Por meio dele, a relação entre as atrizes será construída, bem como multiplicaremos pontos de vista e relativizaremos certezas. O jogo como cena. A cena como a vivência exposta de um jogo;
METALINGUAGEM – O processo de construção do espetáculo faz parte do próprio espetáculo. A arte, em especial o teatro, é o instrumento das atrizes/personagens para tentar se relacionar com o mundo. Podemos dizer que Vladimir e Estragon tornaram-se célebres por representarem a angústia existencial do homem moderno. No entanto, mais que representativos do homem, creio que eles sejam representativos de si mesmos enquanto personagens de uma obra. Seu cansaço e angústia não dizem respeito, unicamente, ao contexto mundial no qual foram escritos. Talvez seu sofrimento exista pela consciência de serem personagens, eternos alvos de uma existência que inexiste. Acentua-se a isso o fato de estarem destinados – dentro da obra que os dá “existência” – a esperarem por alguém que eles já sabem, não virá. Em paralelo a isto, temos as atrizes numa busca pelo espetáculo, a fim de encontros inúmeros com o espectador, com o personagem, numa busca pela forma cor duração e intensidade dos gestos e ações.

Acredito que ao trabalhar a relação destes três pontos durante os ensaios será possível montar esta encenação de ESPERANDO GODOT. Sem dúvida o nosso material primordial serão os próprios ensaios, quando nos perceberemos afetados e movidos pelo desejo de erguer nossa encenação, que será justamente construída por meio destes olhares individuais dentro de um coletivo.

Por último, num artigo publicado na revista FOLHETIM, ao discorrer sobre a crise da representação, Antonio Guedes faz um comentário acerca da obra A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo ou O grande vidro de Marcel Duchamp. Gostaria aqui, no entanto, de substituir o nome da obra de Duchamp e colocar em seu lugar, o nome da peça de Beckett que dá base a este projeto. Com isso, creio eu, é possível ver três tempos da encenação: o que foi ESPERANDO GODOT, o que está sendo agora e aquilo que será, quando houver finalmente o encontro entre encenação e espectadores.

"Nenhuma história aparente. Nada é dito. Tudo está para ser construído. O sentido de Esperando Godot está na busca do sentido. Mas isto não significa que falta sentido à obra. Ela é uma espera pelo olhar que a habitará e que se completa com a imagem do espectador. Mesmo que o sentido seja, simplesmente, olharmo-nos a olhar através de uma imagem incompreensível” (Guedes, 1998).
                   

6. OBJETIVOS

  • A montagem de um texto clássico;
  • Administrar uma equipe maior do que a anterior;
  • Aproveitar ao máximo o diálogo e a troca com o professor orientador; 
  • Conceber o espetáculo como uma série de revelações oferecidas aos espectadores; 
  • Explorar as variações rítmicas da encenação;
  • Investigar e construir registros dramáticos e cômicos e a transição entre estes;
  • Partir de intuições e administrar o processo de dar forma a estas;
  • Trabalhar intensivamente a apropriação do espaço;
  • Trabalhar intensivamente a relação e o jogo entre as atrizes.
                                    

7. CRONOGRAMA.

 
Dezembro de 2009
Leituras da peça e jogos com as intuições.

Janeiro/Fevereiro de 2010
Fundamentação teórica;
Pesquisa e estudo de referências;
Confecção e entrega do projeto.

Março de 2010
Finalização da adaptação do texto;
Início dos ensaios;
Estudos de cenário e figurino;
Leituras. Estudos temáticos. Exercícios criativos;
Treinamento e jogo entre as atrizes.

Abril/Maio de 2010
Improvisações e composições;
Confecção de cenário, adereços e figurinos;
Levantamento de cenas.

Junho de 2010
Fechamento do espetáculo;
Composição de trilha sonora/sonoplastia;
Esboços de iluminação;
Esforço de repetição.

Julho de 2010
 Estreia.
                                  

Falo....


Paro um pouco para me mover em meio às palavras. Tudo está correndo e eu espero agora alguma possibilidade de espera, qualquer, porque tudo está chegando tão veloz que cansa, sabe?, vivo aquela sensação de estar sendo estuprado, sem término, pelo acontecimento sucessivo das coisas todas assim reunidas. Uma confusão. Uma semana sem ponto final, ininterrupta. Muitas coisas boas.

Via e-mail estou conseguindo trocar com Gerald Thomas. Ele está me lançando algumas questões muito interessantes que sem dúvida começam a me auxiliar num esboço mais claro do que poderá ser esta encenação de Godot. Com o término da feitura do projeto, muitas coisas reivindicam agora atenção. A carga de leituras continua, mas não estou dando conta. Preciso resolver antes a dramaturgia.

Fazer GODOT em apenas uma hora. Não quero mais, nem menos. Quero uma hora, um ato, uma única costura dos dois atos originais. Ainda não sei ao certo, mas nesta semana começo a costurar, a coser, a bater num liquidificador - ou seja, pela aleautoria - algumas possibilidades e fazer desse caos se erguer alguma outra coisa. Adoro.

O elenco está se fechando. Os ensaios, planejo eu, começam em 15 de março e seguem sem fim até a estreia, em julho. Nesta semana começo a desenhar melhor uma metodologia de ensaios - nada demais - apenas um rumo a seguir em sala de ensaio. Por quais lugares práticas diálogos experiências pesquisas worshops devemos passar? O que é imprescindível para nos instrumentalizar a fazer este GODOT?

Sério - isso não é segredo - mas um processo é extremamente enlouquecedor. Meus argumentos e conceitos e fundamentação e referências desmancham ante a força desse arrepio que me corta toda vez que penso alguns segundos a mais que o permitido sobre a cena, sobre o jogo, sobre as atrizes, o público, embates, vozes, movimentos deslocamentos sem vírgulo essa gramática da cena é a do descomedimento.

Pois vamos logo enlouquecer.
                             

domingo, 21 de fevereiro de 2010


"Se, para certos críticos, nada há senão palavras soltas em frases inacabadas, "qua-qua", repetições, anomalias tipográficas, devendo ser apenas considerado como o romance da desintegração da linguagem, melhor será, porém, como outros, considerar equivocada tal interpretação que vê um Beckett abdicando de qualquer conteúdo. A obra não é, não pode ser gratuita; seria uma diminuição do seu valor. Parece antes corresponder à angústia, ainda que reprimida, de um autor marcado pelos horrores que viu, e pressentiu, durante a guerra, e que poderão repetir-se. Portanto, um alerta: a Europa e o mundo estão em perigo, sob ameaça. Pense-se nos bilhões e trilhões, um número infinito de vítimas e carrascos, rastejantes... O horror da guerra e do pós-guerra, estilizado [...]."

(pág 56.
Berrettini, Célia. Samuel Beckett escritor plural. Ed. Perspectiva. 2004. São Paulo)
                      

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A Sociedade do Espetáculo em IMAGEM

            
eis que o próprio GUY DEBORD, autor de LA SOCIÉTÉ DU SPECTACLE (de 1967), passou para imagens espetaculosas sua própria tese sobre aquilo que a modernidade germinou e alimentou.


a película, dividida em nove partes no youtube, contém legenda em espanhol e é falada em francês.
  

produção-pós-guerra

                
bom, a analogia com os campos de concentração está se fazendo absurdamente explícita. a coisa com as botas, com a inevitabilidade da espera - eles estão presos -, tudo isso e mais uma série de outras coisas confirmam, sugerem esta possibilidade do pós-guerra.

me lembrou BENT, me fez pensar no porquê da árvore seca e esquálida, da pedra, dos nabos e cenouras, enfim... porém, e agora? o que a humanidade plantou nessa terra seca e contaminada que ela mesma fez surgir?

acho que talvez tenhamos plantado imagens e aparências e representações de tudo aquilo que havíamos destruído. o que criamos no decorrer dos anos da guerra foram tentativas escapes fugas válvulas e IMAGENS unicamente para nos afastar da aridez do real. investimos na fuga, não mais no embate, e sim no hábito e na resignação sobre qualquer forma de paz. paramos o olhar e o corpo por sobre a espera. e nisso, fizemos erguer uma paz imaginada. imaginária. feita de imagens e não de realidade. nem de toque nem de diálogo. a nossa paz hoje é teoria, é toda velada sagrada inatingível. é metáfora.

estamos fartos de imagens. não fartos de esgotados, mas fartos por estarmos sendo pelas imagens alimentados. fartos desse jogo auto-piedoso de se nutrir do que nos falta. de se nutrir pela imagem daquilo que nos faz falta. sim, é mesmo a falta que nos move. que nos move ao seu invólucro, ao seu simulacro. a falta que não veio está aqui, sempre esteve. estamos sobre ela falando, sobre ela fotografando filmando arquivando se deixando especular e se deixando deixar, a troco de quê? a troco da vaga sensação de completude. a troco da vaga sensação de saciedade.

...
  
...

isso me diz que GODOT só precisa chegar, na verdade, porque talvez já tenha chegado. e outra vez mais de novo chegou outra vez. tem essa rapidez da chegada que tão rápida chega tão rápida se vai, se esvái. a nossa fome, o nosso esforço em construir uma imagem para dotar o real de sentido nos avassalou, nos pintou dessa tinta chamada EFICÁCIA e tudo se perdeu. perdemos os traços e tudo soa o mesmo quando não, quando na verdade não é a mesma coisa aquilo que desejo daquilo que poderia desejar. desejo tudo, mas tudo não se pode desejar.

isso me comprova, GODOT acabou de chegar. por esse processo de construção ininterrupta de imagens nós suprimimos a falta e asseguramos o GOZO. asseguramos a felicidade (e o que quer que ela possa ser). nós asseguramos toda e qualquer virtualidade e isso nos serve, porque já não temos parâmetro do real que nos diga: ei, esperem, vocês estão amando bonecas e plásticos quando na verdade deveriam amar as peles.

eu aqui querendo fazer GODOT chegar sem ao menos perceber que ele já chegou faz tempo. e que não há nada de revolucionário nisso.

...
              

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Anna Viebrock

   
Cenógrafa alemã. As imagens seguintes são do cenário de uma peça chamada "Alibi", 2001, Schauspielhaus Zurich, Direção: Meg Stuart, cenário e figurinos: Anna Viebrock, Video: Chris Kondek.





     mais sobre ela e seu trabalho no goethe institut:
http://www.goethe.de/KUE/the/bbr/bbr/sz/vie/enindex.htm


          

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Irmãos VAN VELDE

Trechos de e-mail enviado pelo Leonardo Samarino:



"

Diogo,
Isso é super importante. Procurar sobre a Pintura dos irmãos Van Velde, Bram e Geer.
Beckett descobriu esses holandeses em 1937 e sentiu muita indentificação artística , vendo neles a representação da impossibilidade de representação.
Eles trabalham com a estética do pouco, eles pintam o fracasso de pintar.

"...uma pintura da coisa em suspense, eu diria naturalmente da coisa morta, idealmente morta [..]. Isto é que a coisa que lá se vê não é mais somente representada como suspensa, mas estritamente tal qual é [...]. É a coisa isolada pela necessidade de vê-la, pela necessidade de ver. A coisa imóvel no vazio, eis enfim a coisa visível, o objeto puro. ( P.27 de "Samuel Beckett escritor plural").
       

"Samuel Beckett Escritor Plural"

      
de Célia Berrettini. Editora Perspectiva. 2004. São Paulo.
(alguns trechos selecionados por Leonardo Samarino)

BECKETT, escritor plural

"...Já os textos-quadros do fim de sua trajetória literária ( e de vida) se caracterizam pela escritura apertada, de acentuado tom depressivo, podendo-se falar, grosso modo, de vários Becketts: um, desesperado, mas que procura temperar seu desespero ou angústia, com o riso, como que a negar, minimizar ou camuflar a violência dos horrores que descreve; outro, melancólico, obcecado com o minimalismo, a depuração e que explora os limites do nada; outro, ainda que, como em Rumo ao Pior, teoriza e pratica a abstração literária." (P.4)

"...Esperando Godot de 1948 - peça nova, de ruptura, colocando o público diante de situações dramática insólidas e sua linguagem surpreendente, pois enquanto esperam Godot que não vem, suas personagens, tais palhaços com suas falas acompanhadas de números de circo ou de music hall, bem como o cenário, tudo fala da miséria do homem, do absurdo da condição humana, das dificuldades do homem moderno, desamparado num mundo hostil, adverso, sem sentido. "Tragédia farsesca" ou "Farsa Trágica" ou "Farsa metafísica", na opinião de muitos autores, é Godot, sem dúvida, um marco na história do teatro" (P.5)

"...A década de 60 é das mais produtivas e ricas da criação beckettiana e a diversidade é a sua marca.  A busca incessante de novas formas de expressão, marcando bem a ruptura com o realismo e as formas convencionais, é o traço dominante de Beckett..." (P.11)

"...E é ainda Martin Esslin quem testemunha esse empenho redutor, recordando um encontro, muito antigo, com Beckett, em que este, semi-sorridente, confessara a intenção de alcançar cada vez mais a concisão, a precisão, de maneira que chegaria talvez o dia em que só viesse a produzir "enfim, uma página branca". E, realmente é patente o seu trabalho de redução, numa espécie de aniquilamento ou exaustão. Há uma redução progressiva de seus textos - de início, longos e depois mais e mais breves -, assim como o números de suas personagens e de seu aspecto físico, entre outras, seja no teatro, seja nos textos em prosa". (P.13)

"... Solidão, sofrimento, fracasso, angústia, absurdo da condição humana e morte - são os temas maiores beckettianos, com os quais se associam outros mais.... O homem só ( qualquer homem)  com dificuldade de comunicação, sofredor, num universo hostil, que só pode despertar sua angústia, diante da incapacidade de encontrar um sentido e uma explicação ao absurdo da existência". (P.14)

"Sem família, sem vínculos com a sociedade, sem nome, seus seres solitários procuram vencer o isolamento em que vivem, apegando-se à palavra: falam todo o tempo, para preencherem o vazio da existência, tentando vencer a solidão". (P.14)

"...Às vezes, trata-se de mero contato passageiro: retorna, em seguida, à solidão, como se as palavras estivessem gastas, ultrapassadas, e, portanto, insuficientes para a quebra de barreiras". (P.15)

"... O homem para quem apenas resta uma existência desprovida de sentido e de esperança. Ausência de valores nos quais apoiar-se: ausência de absoluto. Resultado: o mais agudo pessimismo. Reflexo do homem do séc XX, aniquilado pelos anos de guerra e pela ciência nova que destruíram a fé em sistemas racionais, filosóficos ou políticos. Total ausência de fé, de esperança". (P.19)

"... Esperando Godot, que vem sendo considerado a grande farsa metafícica. Nela, o trágico e o derrisório se unem para pintar o absurdo da condição humana". (P.19)

"Vertigens do vazio. Do nada. De pausas da não-existência- é o tempo morto da espera de Godot, que não virá. É como se, nas pausas, estivesse Beckett fazendo ouvir a respiração silenciosa da morte, que se aproxima cada vez mais, encurralando-os". (P.26)

"Não há outras questões , senão a morte, reafirma Beckett. E ele a trata de forma ímpar - é a inimitável captação da incaptável beleza da morte". (P.27)
           

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

TEXTO # ENCENAÇÃO

          
eu não queria colocar texto versus encenação. o embate entre os dois não quer dizer rivalidade. quer dizer tentativa, alargamento, multiplicação. então, o texto do beckett tentando ser preservado ao máximo. eu reduzo alguns trechos, somo outros, sim, adaptar é escrever texto (quase) novo. paciência. para não querer que o texto diga aquilo que só poderá ser dito pelo movimento. eu não escolhi o texto de beckett para escrever outro. a escritura nova e diferenciada - ainda que vulgar e corriqueira - é aquela que vem pelas atrizes.

então eu digo, aliás, eu coloco num mesmo ringque, o da cena: atrizes e personagens. eu coloco sempre pares. eu coloco encenação e texto. eu coloco alvoroço e silêncio, próximo e distante, pequeno e grande. no meio disso tudo, resta você, o espectador. restam leituras olhares meios de caminhos que eu não completo e que nem quero por eles me responsabilizar. eu pego os extremos e os bato, um contra o outro, faço um ao outro se abraçar. e assim, o meio fica morno, o meio fica potente de ser casa, de ser abrigo, de ser realidade.

M E T A L I N G U A G E M
eu estou me debatendo para encontrar em mim esta necessidade. se para mim a chegada de gogot não é um problema, ou seja, se ele inevitavelmente vai chegar (da forma que for, no tempo em que for, quantas vezes quiser), bom, se isso não é um problema. qual é o problema em questão? ou seja, o que será colocado em questão, o que será adornado feito problema, conflito, dificuldade?
o que se coloca em jogo, em cogitação, em suposição, em teste, é A ANGÚSTIA DA CRIAÇÃO. é colocar as atrizes numa busca por anular a espera, ou seja, atrizes numa busca para anular a improvisação. atrizes querendo ser peça, ser texto decorado, ser intenção medida e ser marca dominada. as atrizes não buscam segurança em cena, não é isso, mas buscam como ser em cena de forma a deixar claro: estamos buscando e mais que isso - NÃO SE LEVANTEM - estamos chegando. a peça está vindo. não estamos (apenas) delirando. estamos indo, quase chegando, os personagens já podem ser tocados, podem ser tocados, podem ser...

elas querem ser teatro. os personagens querem ser encontro. o teatro é encontro. então a busca das atrizes se confunde com a dos personagens. ambas - as atrizes e as personagens - querem fazer chegar. querem o encontro, querem saciar e não mais rodar rodar e rodar em busca do que não vem.


...

está muito difícil. seguir, então...
        

.tudojuntoaomesmotempo.

               
primeiro
godot surgiu quando eu achei que não aguentava mais esperar. godot é necessidade de resposta. é da ordem das necessidades. é explicável, sim, mas passionalmente impossível de classificar. sobre ele pode-se tudo dizer. ele é escape. é válvula. tudo nele encontra sentido. é espaço aberto para o precipício da alma. godot é ode ao otimismo. é no-nilismo. é no-pessimismo. é utopia concretizada. é bonito porque são jogos para amenizar os buracos da estrada. é tentativa erro e dissolução. é tentativa erro tentativa e dissolução. é sarau de sinônimos. é seguir sem fim nem começo. é o meio do caminho que significa, no meio das contas, estar vivo.

segundo
fui então buscar algo para explicar a intuição. queria algo que pudesse assinar embaixo do que tenho sentido, algo que pudesse me dar um motivo bem concreto e argumentado para poder dizer sem medo de ser eu mesmo: a nossa noção de espera está alterada. é espera. mas espera noutro tempo. mudaram-se os tempos. mudaram-se as formas. o nome sobrevive. o nome inda é espera. mas o como, a duração, a qualidade. tudo isso mudou. então, caí em outro universo (dentro deste ainda).

terceiro
universo da velocidade voracidade desmedida vontade. universo do prazer. da psicanálise. eu fui ver - em mim primeiro e sempre - como em mim havia a vontade de concretizar o instante sonhado. como a espera não durava mais que algumas horas. como eu encontrava saída como eu encontrava quase toda forma de saciedade. eu me encantei ao perceber - com horror - como eu substituía assim facilmente um amor por outro recém-inventado. eu não estou buscando o outro eu estou buscando a tampa do meu buraco. o amor é nome dado às tampas. caramba. meu desejo se muito aguardado vira implicância, vira desimportância, vira indiferença e nada demais. eu preciso beijar a minha boca alguma boca que possa a minha dizer: fostes beijada. és boca querida. és, você, boca, amada.

quarto
e então o tempo retorna para me dizer que ele passou. ele volta para dizer que as ruínas viraram prédios e que os prédios viraram ruínas. o tempo volta para dizer que as torres que caíram tinham sido antes construídas e que agora novas torres se ergueram, ainda mais altas, e que em breve, deduzo eu, deverão também cair. bom, daí o tempo volta e pede silêncio. eu não entendo o motivo. eu não entendo a pausa em meio compaso. mas é que estando nós assim em silêncio, todo grito interior sufocado, todo desejo adormecido, todo recalque, bom, tudo isso enfim acaba gritando. não é grito, mas é que estando em silêncio, um soprar vira furacão. e da barriga eu escuto outra vez saindo a voz da fome, da necessidade (?), é preciso comer ou se morre. é preciso ter prazer ou se morre. é preciso. não podemos negar.

quinto
o godot que eu esperei quando chegou tão rápido foi comido. o godot já comido como resto tão rápido foi esquecido. depois, quando o godot chegou - de tanto antes ter sido desejado - bom, quando ele chegou eu o comi de novo em movimentos largos. e depois, caí no chão e fiquei resvalando sobre qualquer coisa sobre a civilização. e fez-se fome de novo e fez-se o homem em excreção. e agora: aqui espero de novo para tapar os buracos dos dentes. eles têm fome. eles, e tudo dentro de mim, configurou-se como gentes. tudo é possível de desejo. tudo dorme em paz mas saliente. esperando a hora ou o segundo no qual um pêlo do corpo se ergue e clama ao conjunto todo: vem carne aí, gente.
     

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Beckett por Dondero.

   
                 
Samuel Beckett por Mario Dondero.