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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

MIRANDA na Sede das Cias --- 7, 8 e 9 de Dezembro às 20h


CRÍTICA --- A desobediência libertadora: além do bom ou ruim

Por Luciana Romagnolli / Horizonte da Cena

Desde o Festival de Curitiba deste ano, quando o Teatro Inominável e o Magiluth se revezaram no Teuni, algo em comum se viu no teatro de Recife e do Rio de Janeiro, nos modos como esses dois grupos de jovens atores, entre 20 e 30 e poucos anos, enfrentam gigantes da dramaturgia e apropriam-se do palco como espaço de construção. Um local onde não cumprem nenhum modelo predefinido e limitado do que seja a arte teatral, mas buscam qual a forma mais coerente e pulsante para aquele material específico que têm às mãos, proporcionando ao espectador experiências vertiginosas de aproximação com universos canônicos: Samuel Beckett, Nelson Rodrigues.

Desprendidos das verdades e absolutismos fixados pelo vasto repertório de reflexão crítica sobre as obras desses dois autores, tanto "Viúva, Porém Honesta", do Magiluth (PE), quanto "Vazio É o que Não Falta, Miranda", do Teatro Inominável (RJ), carregam um entendimento profundo do que é o essencial nesses escritores - ou, ao menos, do que é essencial para cada um dos grupos na relação com esses escritos. Além disso, ambos fazem da apresentação um momento de jogo no qual a representação é apenas um dos procedimentos possíveis; o endereçamento das falas e ações à plateia valoriza o encontro; e os personagens são coadjuvantes em meio à relação mais ampla que se estabelece entre atores, diretor e público.

A presença do diretor em cena, aliás, é sintomática do aspecto de construção. Seja operando luz e som, como um olhar de fora que em momentos específicos entra realmente no jogo, como Pedro Vilela faz em "Viúva", representando o padre ou tirando a roupa; seja interferindo de fato no desenvolvimento da cena com direcionamentos às atrizes de acordo com cada apresentação, como faz Diogo Liberano em "...Miranda", a presença criadora do diretor se materializa como uma interferência visível para o espectador. O fazer eleva-se a primeiro plano e as escolhas se denunciam enquanto escolhas.


Assim, abandona-se a ideia de peça benfeita e a ilusão de reprodução da vida, tal qual se ambicionava no drama clássico com uma história verossímil que comovesse à medida que nela se embarcasse esquecendo seu caráter ficcional. Se há indistinção entre teatro e vida, aqui, ela se dá no modo como o teatro se constrói como uma atividade de seres viventes elaborando ficcionalmente o real num espaço de convívio e liberdade criativa.


Nos dois espetáculos, reage-se com liberdade e leviandade às amarras culturais. O desrespeito é um valor imprescindível. Os atores são, afinal, indivíduos diante de uma obra, dela independentes. E irreverentes, porque despojados de reverência tolhedora.


O Magiluth investe, então, na subversão do moralismo. Qual outra abordagem mais justa à "farsa irresponsável" escrita por Nelson Rodrigues contra o puritanismo, a crítica, a imprensa, a psicanálise e  a família, em resposta às manifestações da opinião pública sobre sua peça anterior, "Perdoa-me por Me Traíres"? Permissividade: eis a atitude cênica com a qual reagem os atores recifenses, à sua vez, ao contarem a história de um pai em busca de um pretendente para seduzir sua filha porque ela (simbolicamente) se recusa a se sentar após a morte do marido.

Despudoradamente, eles manejam o texto, o sexo e o escracho. Voam batatas chips, surgem um Senhor Batata, bonequinhas nuas e demais objetos prontos a surpreender e a fazer rir, mesmo que apelando a um senso de humor digno da "turma do fundão da quinta-série", por assim dizer. No jogo proposto pelo Magiluth, o desbunde é permitido. O excesso e a piada ruim, também. E por que não seriam, se o alvo são justamente as instituições e tradições que atuam como censoras sobre a conduta alheia, donas do certo e do errado?

A desobediência no espetáculo não é menos que política. E seu potencial de afetação se eleva na medida da energia desprendida pelo grupo de atores - cabe dizer, todos homens e jocosamente oscilantes entre as explosões de testosterona e de feminilidade. Em alta voltagem e ritmo intenso - e entendendo o teatro como um jogo de ação e representação pactuado com os espectadores; falso como os pilares morais da sociedade de que debocha, porém capaz de desnudá-los aos olhos do público -, o Magiluth faz com que as provocações de "Viúva, Porém Honesta" atinjam, afiadas a carne do nosso bom gosto e bom senso.

“Como a morte, a indecidibilidade, o que chamo também de ‘destinerrância’, a possibilidade para um gesto de não chegar ao destino, é a condição do movimento de desejo, que de outra forma morreria antes do tempo”.

J. Derrida, em Sur Parole. Instantanés philosophiques, p. 53

Em "Vazio É o que não Falta, Miranda", o permissivo jogo com estímulos oriundos do universo beckttiano se torna possível a partir do sepultamento de "Esperando Godot", encenado pelas quatro atrizes sob as vistas do diretor, também em cena. A leitura de uma sinopse falseada da peça escrita em 1952 já aponta para a infidelidade adotada como conduta pelo Teatro Inominável. Uma vez que foi descartada a origem e o fim tampouco é pretendido, importam o meio e seus rizomas: o processo.

"Miranda", afinal, se configura como um antiespetáculo, forjado nos vazios e nas falhas de uma pretensa montagem da peça, que, à semelhança de Godot, nunca chega a se realizar. Assim, lança-se à distinerrância de desejos postos em movimento, ainda que nunca alcancem o que se pressuporia como destino. Cobrar-lhe os contornos de um espetáculo benfeito, resultados mais satisfatórios ou que faça algum sentido é negar-se a fruir a experiência proposta pelo grupo.

A fidelidade a Beckett reside justamente no modo radical como as questões por ele impressas na linguagem e na estrutura textual de Esperando Godot são experimentadas dramaturgicamente, isto é, de modo estruturante dos sentidos e afetações, na composição da cena.

A experiência de expectação de três apresentações permite, primeiramente, desfazer impressões iniciais sobre o que é representação, o que é acaso e o que é improviso, e perceber a desenvoltura das atrizes para transitar entre essas categorias. As quatro cumprem uma gama de jogos dos quais menos importa os resultados do que a falta de lógica inerente à espera que protagonizam - ou que o público protagoniza diante delas.

Há uma espinha de ações repetidas diariamente, mas sujeitas a uma ampla margem de improvisação, seguindo os humores delas mesmas, do diretor e do público. O improviso como técnica de criação teatral alcança estatuto pouco visto, retrabalhando dia a dia a matéria polissêmica do espetáculo, sensível aos estímulos e fluxos do instante. Assim, ata-se o momento de criação ao do encontro com os espectadores, e caberá a estes se deixar afetar e fazer sua própria leitura dos acontecimentos.

A direção de Liberano valoriza surtos individuais dele e das atrizes, expondo o frágil e o patético de cada um. E, se o diretor reage com veemência aos excessivos apelos cômicos de uma delas para render o público, é ele também quem continua a permiti-los a cada apresentação. O humor, afinal, é a estratégia de adesão em meio aos destroços de narrativa. Em algumas ocasiões, pode-se perder a medida e as complexas linhas de ação empregadas no espetáculo se diluem sob a comédia ligeira, na tentativa de manter a plateia entretida. Mas qual a medida? Experimentar diariamente. Correr o risco.

O que está posto em dúvida, enfim, é a própria noção de dar (ou não) certo, deslocando o foco para o processo. Tal qual uma redenção do grotesco perante o sublime, o Inominável realiza uma redenção do desacerto, do descuido, do deslize, do desvio, do equívoco, da falha, da falta, da imprecisão, da impropriedade, da incorreção e do desatino, mas também da tentativa, como inescapáveis à vida e à arte.

Liberto da lógica positivista ou mercadológica, se "Miranda" atinge algo de sublime em seus desfoques, é por restituir à vida o valor da experiência e da imperfeição. Como melhor escreveu Soraya Belusi: trata-se, aqui, não só da arte, mas também da existência como processo. Irresistivelmente incompleta e insatisfatória, uma provocativa disposição a estar vivo.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

CRÍTICA --- CELEBRAÇÃO DO TEATRO (E DA EXISTÊNCIA) COMO PROCESSO


“Contudo, se o teatro é a arte do provisório, daquilo que se esvai a cada noite, sem a possibilidade de recuperação idêntica e exata à da noite anterior, não seria o processo de ensaio, espaço por excelência da precariedade, um espelho mais fiel da arte teatral? O próprio espetáculo é sempre um devir, uma experiência que, à revelia de nós mesmos, nunca se completa inteiramente. E, por mais exigentes que sejamos, será sempre inacabado. O desejo do ponto final parece não passar de uma utopia – duramente buscada, mas nunca atingida, já que ele vai contra a própria natureza do teatro”.

(Antonio Araújo, “A Gênese da Vertigem”)


Não poderia ter começado este texto de outro jeito. Até podia, na verdade, mas hoje decidi começar assim, de improviso. Pode até ser que não seja o ideal, que algum erro fique exposto, mas não tem problema, afinal, é só a primeira tentativa. Se, ainda assim, ao fim da leitura, esta análise soar um tanto inacabada, em uma próxima oportunidade tentarei organizar melhor pensamento e preencher as lacunas. Ou não. Fazer uma crítica, assim como uma peça de teatro, não é nada fácil. Mas, para algumas pessoas, viver também não é, nos lembraria uma das atrizes de “Vazio É o que Não Falta, Miranda”. E confesso que não tenho a menor ideia de como isso irá terminar.

Improviso, erro, tentativa, inacabado e imprevisibilidade são algumas palavras-chave no jogo que Diogo Liberano e o Teatro Inominável propõem na sua versão para Esperando Godot, de Samuel Beckett. Através da negação à obra do autor irlandês, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, o espetáculo lança um olhar sobre a sua própria condição como objeto artístico. Ao falar de arte, porém, o discurso retorna para a vida. E, mesmo desistindo de esperar, o coletivo se encontra com Beckett e seu Godot.  

“Vazio É o que Não Falta, Miranda” efetua uma espécie de “processualização do espetáculo”, realizando um transbordamento dos procedimentos do processo de criação como elementos da dramaturgia e da encenação e, com isso, ressaltando, como afirma acitação de Araújo, que o resultado, o ponto final, a perfeição, é apenas uma utopia nunca atingida – assim como Godot, ou Miranda, ela nunca chegará.  Ou, como diz Josette Fèral, a estreia do espetáculo “não constitui a morte, como muitos pensam, senão um nascimento”.

Ao assumir o processual como elemento de sua natureza, “Vazio É o que Não falta Miranda” realiza, ao mesmo tempo, um jogo que inclui referências a diversas esferas do fazer e do pensamento teatral do século XX até aqui: o (des)respeito ao autor, o lugar do encenador e do ator (ambos criadores da cena), a fragmentação da dramaturgia, a quebra da ilusão, a materialidade da cena, a relação entre ator e personagem e a cocriação do espectador.

As proeminências de aspectos do processo aparecem já no espaço cênico e se revela no desenho que remete ao ambiente de trabalho do grupo, com lâmpadas fluorescentes, uma mesa em declive, cadeiras improvisadas, entre elas um engradado de bebidas, mesa de operação ao lado, fita crepe no chão.

Esperando Godot é mesmo uma bíblia entre os apaixonados por teatro. Assim como Samuel Beckett é um semi-Deus. Essa percepção é usada (e se comprova) logo em uma das primeiras cenas, em que uma das atrizes começa a falar o nome da peça e do autor e pede que os espectadores completem. A resposta vem em uníssono no teatro. O embate entre as ideias contidas no texto do irlandês e o que pensam os artistas-criadores, ainda no processo de “estudo de mesa”, se materializa em cena com a leitura da sinopse e a revolta posterior da atriz.

O enterro da obra é a autopermissão (e o pacto com o espectador) para desmoronar os alicerces e  espaço para uma nova arquitetura que, embora negando a primeira, ainda traz em si seus rastros: no jogo de palavras, na repetição que altera os sentidos, no humor clownesco, na relação com o tempo e com a espera. Não é apenas na encenação de uma das cenas do texto original que Didi, Gogo, Lucky e Pozzo se fazem presente. As citações ao original permeiam não só a construção dramatúrgica, em referências explícitas à estrutura da linguagem, como também, de maneira mais sutil, se materializam em cenas como a que a repórter come uma banana ou que uma das atrizes tem dificuldade para retirar a bota do pé.

As funções na “hierarquia” teatral também são colocadas em questão no espetáculo: as atrizes, ao mesmo tempo personagens de si mesmas, são identificadas por seus sobrenomes, e o encenador é também ator e, ao mesmo tempo, não seria personagem?

A ilusão teatral é quebrada de todas as maneiras, em um movimento de “celebração da arte como ficção, celebração do teatro como processo. (…) o ator como tema e figura principal, a performance como terceiro elemento entre o drama e o teatro”. (Hans-Thies Lehmann). A afirmação da teatralidade se dá com procedimentos simples, desde a aceitação da interrupção da “ficção” pela chegada atrasada de alguns espectadores até com interrupções do diretor porque a cena não está se desenvolvendo ou porque errou a execução da luz.

Propor ao público que escolha quem representará qual personagem é torná-lo, também, parte do jogo desde o início, numa afirmação constante da cena como lugar da criação e não reprodução da realidade. A oposição entre naturalidade e artifício também se faz constante não só no trabalho expressivo das atrizes, mas também na permanente indefinição, para o espectador, do que pertence, de fato, ao ato criador diante de seus olhos, numa espécie de obra em processo, e do que já estava previamente definido.

Neste percurso com “Vazio, É o que Não falta, Miranda”, é o espectador que está representando os papéis de Vladimir e Estragon, não os artistas-criadores. Somos nós, público, que passamos ali “duas horas que não levam a lugar algum”, esperando uma obra perfeita, acabada, completa, com início, meio e fim, que nos faça algum sentido. Revivendo a espera. Enfim, “Esperando Godot”.  

Esta foi apenas a primeira tentativa, assim mesmo, um tanto inacabada, cheia de falhas, talvez até leviana. Eu até poderia tentar explicar melhor, mas tem dia que a coisa não desenvolve como a gente planeja e a espera do leitor por algo que lhe preencha já foi longa. Mas só para não acabar assim, sem nada, vou fazer como Liberano: dar uma resumida no que eu tentei dizer através de outra citação. Essas palavras pertencem ao ator Marcelo Olinto e se referem ao espetáculo “Ensaio.Hamlet”, mas adoraria que tivessem sido minhas e, por isso, me dou ao direito de improvisá-las aqui: “O espetáculo então, como que se buscando, se ensaiando e se questionando, cria um espaço onde o ator se torna espelho do homem em processo e, portanto, do público”.

Por Soraya Belusi

Foto: José Junior


Referências:

FÉRAL, Josette. Teatro, Teoría y Práctica: Más Allas de Las Fronteiras. Buenos Aires: Galerna, 2004. 
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
SILVA, Antonio Carlos Araújo. A Gênese da vertigem: o processo de criação de O Paraíso PerdidoSão Paulo: Perspectiva, 2011
DIAZ, Enrique; OLINTO, Marcelo; CORDEIRO, Fábio (org).  Na companhia dos atores – ensaios sobre os 18 anos da cia dos atores.Rio de Janeiro: Aeroplano, 2006.