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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Um ensaio...

Helena, Flávia, Adassa, Fabíola e Diogo \\ Setembro de 2010.

Teve um ensaio - no Teatro Glaucio Gill - que eu havia deixado as quatro trabalhando sozinhas e tinha ido até a universidade resolver umas coisas. Quando voltei, sorrateiro, escondi-me atrás da rotunda velha e cheia de furos e fiquei durante longos minutos espiando como trabalhavam sozinhas.Que golpe baixo. Que coisa horrível. Ao mesmo tempo, sim, é verdade, que coisa linda. Ver como se doavam e como negociavam a melhor forma para fazer dar certo. Ver como mediam suas posturas tentando somar o que queriam, o que eu havia pedido e ainda o resultado de todo esse somatório.Naquele dia eu soube, mais do que em todos os outros, que elas estavam mais do que juntas. Hoje olhando minhas indicações, minha condução - muita coisa não fez sentido - e mesmo assim elas foram firmes e construíram uma constelação de sentidos. Transformaram migalhas de pão em estrelas.Elas já sabem disso de eu ter ficado vigiando o ensaio escondido. Os segredos comigo não duram um ensaio. É tudo sempre rapidamente revelado, portanto, essa postagem é para dizer aquilo que o preto e o branco na foto já se encarregaram em dizer: há saudade. E não é de Miranda. É tão somente de Helena, Flávia, Adassa e Fabíola.Que juvenil eu aqui declarando abertamente toda essa angústia. Perdão aos que tem pudor em excesso: é tudo material de trabalho. Sim, de fato, essa distância toda tem me deixado angustiado.

Para Fabíola,


Rio de Janeiro, 24 de junho de 2010.

Fabíola. Escrevo-lhe para informar o seu papel neste ESPERANDO GODOT: Lucky. Você será tudo o que não quis ser desde o início. Será o fulano que fala um texto imenso e que deve estar decorado. Será o fulano que tem a corda no pescoço, será o cara que é usado de palanque para os outros chamarem atenção. Mas o que Lucky não contava, era que encontraria um corpo muito específico para nele se aportar. Um corpo cujos cabelos gritam sem nada falar. Cabelos mudos com força de furacão. Cabelos pós-dramáticos. Um corpo capaz da solução mais inusitada, da proposta mais estética, da sutileza mais acertada. Um corpo capaz de reverter o quadro e revelar as fundações. Capaz de encontrar uma porcaria qualquer capaz de validar toda uma encenação. Isso que escrevo não é uma questão, não é pergunta, não é dúvida. Escrevo-lhe para dizer o que eu como diretor estou lhe dando como obrigação: deverás arrumar o cenário sempre que ele se bagunçar. Isso não te impede de descobrir estratégias. Mas, acredite: é bom colocar suas luvas finas para não se cortar. É bom esse pragmatismo. É bom essa mão que diz tanto quanto uma boca possa dizer. É bom gravar esse texto no gravador e aprender a nos confundir se quem fala o texto é você ou a caixa de som. Você tem as referências, Lucky. Você não fala porque é mudo, mas porque escuta mais e sempre mais. Não fala porque vê. Não fala porque descobriu muito cedo que há outras maneiras de compreender como se pode guiar uma vida e/ou uma encenação teatral. Fala de Van Gogh e de Frida Kahlo. Mas fala nos revelando seus quadros. Você tem essa autonomia, você não é esse Lucky apertado, aprisionado. Você, Lucky, é a redenção deste Lucky mortificado. Deste Lucky cujo monólogo já foi mais de mil vezes encenado e sempre assim, lento, chato, incompreensível. O seu monólogo – você sabe disso – pode ser editado. Pode ser acelerado, pode se tornar mais grave, mais agudo, você aceita ser Lucky não para condená-lo, mas justamente para lhe permitir ser livre. Os objetos fora do lugar, é você quem pede ajuda para tirar essa e aquela porcaria daqui e as organizar. É você quem doa o seu corpo para ser escravo, para ilustrar essa história. Da mesma forma que é você quem tira o corpo fora quando bem entender. É quem surpreende com saídas que sequer poderíamos pensar. É quem propõe usos outros para o que sempre foi usado de um jeito específico. É estar atenta como nas raias. Se você fala pouco, é porque então escuta e vê com ainda mais precisão. Atenção às mãos. Você já pesquisou sobre a língua dos sinais ou vai ficar fingindo dizer algo que não está sendo dito? Você juntou a caixa de fósforos ou fingiu não tê-la visto? É preciso jogar com tudo. Mesmo que já se tenha colocado a máscara de cachorro, mesmo que já se tenha agüentado uma placa por mais de uma hora... Descubra-se Lucky, em cada segundo desta encenação. Ela é sua morada. E o que você está esperando? Que lhe dêem a palavra? E o que fará quando elas lhe forem dadas? Não lhe faço perguntas para que responda. Faço-lhe perguntas para que não se esqueça daquilo que já sabes: que a vida é uma constante busca por sentido. Peço-lhe: não nos deixe esquecer isso. Não nos deixe. Nós, nos deixe.

Para Adassa,


Rio de Janeiro, 24 de junho de 2010.

Ada. Sempre temo os nomes que dou para dizer sobre a sua interpretação. E sabe o que acho? Além de dizer interpretativa, além de rotular de histérica, além de representacional, além de tudo isso, o que fica é mesmo a busca de alguém em tentação, alguém disposto, alguém querendo ser amado, querendo chamar atenção, por que não? Qual é o problema? O mundo está cheio de olhos, cheio também de corações, mãos, dedos, braços e abraços. Quero ser amado assim como você. Por isso não se boicote. Queira aparecer. Descubra, no entanto, a dosagem exata. Experimente o sumiço, descubra como ser invisível, justamente para fazer sentido a você a possibilidade da aparição, a surpresa, a revelação. Escrevo tudo isso para dizer o seu papel neste ESPERANDO GODOT: é você Pozzo, Ada. Do início ao fim. Do fim ao início. Alguém cujo Godot se refaz com extrema agilidade. Alguém cuja vontade de vencer, de conseguir e contemplar se renova a cada ato, a cada cena, a cada fala. Pozzo é ser em tentação. Mas tenta tanto, tenta tanto, que acaba nos cansando, nos fazendo rir, nos causando ódio e provocando risadas. Dentro, porém, dorme aquecido um gesto capaz do afeto, um despertador que às vezes grita e o torna alguém tão único, tão sincero, alguém tão desprovido desse mistério da interpretação. Veja bem: o que escrevo aqui não é dúvida, não é questão. É certo. É ponto final. Não se pode questionar. É você uma atriz buscando aquilo que se vai interpretar. Buscando o gesto, o tempo, o ritmo, a intenção. Nosso ESPERANDO GODOT é sem dúvida a tentativa a cada sua aparição. Estamos descontentes por sabermos que podemos sempre tentar de novo aquilo que um dia já foi o máximo do super bom. Você é Pozzo pela forma em que se lança, batendo o corpo com força no chão, se machucando não para chamar atenção, mas para tentar ultrapassá-lo. Quer ser maior, quer ser melhor. Por isso talvez esteja com Lucky, já pensou nisso? Porque estão juntos? Ele pode te ajudar ou o contrário? Porque estar junto e não sozinho? Porque tantas perguntas? Não responda pensando, responda tentando. E nisso a pergunta sai de você e vem para mim e vai para o outro e assim a nossa encenação segue sem fim, porque Godot chegou e foi digerido e voltou a nascer e a ser querido e a ser comido e assim segue não só nossa peça mas a própria existência. Descubra nesse convite que lhe faço o seu papel dentro desta encenação. Descubra o seu gráfico, descubra indícios da contenção. Como dizer o mesmo menor? Como dizer sem gritar? Como dizer sem falar? É um convite a se descobrir. A ultrapassar você mesma e se reconhecer distinta, alguém capaz de se diferenciar. Não se recrimine, não há questão. Há um jogo e um convite meu a você para o amadurecimento, para a ultrapassagem, para o jogo quebrado a todos os lados, para a multiplicidade, para a confusão. Imagino que esteja confusa, pensando como dar conta de tudo isso que escrevo. Mas, é preciso lembrar: não é dúvida, isso aqui não é questão nem pergunta: isso já está dado e é somente uma leitura minha do que é seu, de fato. Anagrama. De fato, minha leitura é uma do que é isso. Um convite ao riso, ao susto, ao abrupto. Um convite aos espasmos, ao tremor, ao medo. Você, Pozzo, pode nos mostrar o que pode vir a ser a sua indignação. Um beijo na testa. 

Para Helena,


Rio de Janeiro, 24 de junho de 2010.

Carolline. Escrevo para lhe dizer o seu papel neste ESPERANDO GODOT. É você Estragon, Caroll. Estragon. Pelos seus arrotos, pelo seu corpo, pelo instinto redescoberto e alimentado. Pelo imprevisto, pelo susto, pelo grito, pelo salto. Pelo ofegar. Pelo corpo tosco e desperto. Pelo corpo todo e coberto, por joelheiras. Pela filosofia traduzida em arrepio. Estou lhe escrevendo para voltar ao início e provocar o encontro. Porque Godot já chegou para você. Seu Godot me parece chegar a cada nova brincadeira, pois chegar antes de ser fim em você – para mim – é partida. Basta começar. Não importa o resto. Não há de importar. Importar se permitir ser corpo para o que o imprevisto possa sobre ti lançar. Peço astúcia. Peço-lhe escuta e PdD. Saiba sair para voltar potente. Saiba sair para sair e não voltar. E se fazer presente porque fez com que todo mundo lhe fosse procurar. Deixe-me ver, deixe-nos ver a imensa capacidade de amar que sobrevive nos seres que não falam. O amor inaugural. Aquele que não é pessoal, que fala com cada coisa, seja coisa algo vivo ou não. A busca. Que não cessa, você vê? O cachorro come e logo em seguida precisa comer. Você busca e testa e precisa fazer de novo para se satisfazer. É assim mesmo. E no meio do caminho, ele se diverte. Eu digo, o Estragon. Ele se diverte com o dicionário, ele se diverte com o cabelo balançando ao vento quando a gente acha que ele está entendendo algo que está sendo dito. Ele torna ruidosa a leitura mais óbvia, ele relativiza. Menos por saber e mais por ser reativo. O seu Godot está na respiração. Vai e volta. Mas pode-se intensificar o encontro. Isso que escrevo não é uma pergunta, não é dúvida. É constatação. É o que é, não há chance de modificação. Neste nosso ESPERANDO GODOT, cuja direção compete a mim, eu lhe digo que és Estragon e é isso. Simples assim. Aberta ao jogo. Recebendo, lendo e propondo. Lendo? Propondo? Pode sair para tentar entender, mas volte. É preciso voltar. Fale o texto do Beckett, fale o texto de Beckett. Ele é tudo o que você sabe falar. E não se importe com os outros, com as outras. Se eles, eventualmente, fugirem do texto, você saberá pelo texto os condenar. Mas importa? Que seja, pois, aquilo que seu corpo gritar. O cachorro quebra o corpo porque quis quebrar ou porque quis brincar. O cachorro morde o dono para machucar ou dizer da forma dele o quanto de amor pode doar? Às vezes se escreve com sangue outra coisa que não sofrimento. Nada de laços, nada de atrasos. Pontualidade. Devoção. Foi-lhe dada uma chance no meio dessa confusão toda. Preciso vê-la inteira em tentação. Potente. Única e acompanhada. Capaz de amar e morder. Capaz de ser rápida e kinestética. É um convite, Estragon. Abro-lhe um espaço para brincar. E lá tem objetos, tem fio, tem lâmpada, fósforo, porco, gato, celular. Sim, lá tem celular. Você pode falar, pode gravar, pode bater, morder. Você pode se aproximar. De mim também. Eu faço carinho, eu te expulso de perto. Nesse movimento a gente preenche o tempo e a vida parece outra coisa não menos parecida com a vida, mas pelo menos, mais radiante. Muitos espaços num só tempo. Muitos tempos num só suspiro. Por isso se ofega. O corpo grita, Estragon. E isso não é o fim, é só o início...

Para Flávia,



Rio de Janeiro, 24 de junho de 2010.

Flávia, leia com atenção. Estou lhe informando por meio deste papel qual é o seu papel neste ESPERANDO GODOT. Você é Vladimir. E isso não é uma pergunta, não é questão, não é um dado contra o qual você pode ou deve levantar questões. É antes um convite, para viver aquilo que já está sendo vivido desde o início. Você que está comigo faz tanto tempo, é normal que me queira ter por perto, ali em cena, já que estamos assim – tão próximos – desde o início. Pois lhe digo também que estou ali. E aqui. Dentro e fora. Ao redor. Eu estou. E isso também não é uma questão, por mais que se possa duvidar. Estamos em jogo. Mas quem dá as regras sou eu. E você é a atriz, peça chave nesta confusão imensa. Você é uma atriz, Vladimir. Na cabeça: a cabeça. Um excesso de pensamento que por vezes o torna surdo e cego e mudo, para enfim, começar tudo de novo. Persista. 3:1. Eu te disse uma vez que vocês atrizes eram minha única verdade. Não estava mentindo, não estava inventando. É verdade. Mas lhe peço: não me deixe duvidar das mentiras que crio para continuar vivendo. Persista, defenda isso e convença a todos. Vença com os outros e nos prove, nos faça acreditar que Godot realmente vai chegar. Não importa que os outros não acreditem, importa ter algo no que se segurar, portanto, segure a peruca e siga adiante, por mais que às vezes pareça não se estar saindo do lugar. É Vladimir por tudo o que foi agora. Pelas perguntas, pela necessidade extrema de encontrar um sentido, uma explicação, por necessitar entender. Isso não é problema. Isso é possibilidade. Uma possibilidade. Sim. Fazer arte é uma merda. O “às vezes” poderia interceptar a frase anterior. Mas não estaríamos falando de arte. O que estamos construindo é muito potente. Apostamos no terror, na desorientação e na dificuldade. Agora é preciso ir ainda mais junto e com calma. Com calma. Para se chegar a algum lugar. E eu repito: estou aqui. Deixe-se ser guiada, deixe-se guiar. Você é Vladimir porque exige o sentido quando ele escapa. Duvida do sentido quando ele se revela. Quer entender, quer explicar, quer associar, quer encontrar um chão. Ser o que se é não é motivo para condenar, é motivo para estar aqui, vivo, pulsando, buscando, indo e voltando. Mas. E haverá sempre um “mas”, pelo menos. Peço que não se perca pensando demais porque isso nubla os seus olhos e tira deles a potência da sua busca. Mesmo estando eles abertos, eu sinto, eu acho, eu sei, acabarás não vendo que Godot passou, que já esteve ante a ti, que bateu à porta, mas você não ouviu, porque estava falando. Porque sua cabeça estava gritando. Espreita. Espera. Esperta. Você aposta que ele vai chegar, você se arruma para isso, ainda bem. Ainda bem, mesmo. É essa a sua fé, essa é sua religião. Ok. Mas não profane a qualquer custo. Proteja. Defenda. Não é mesmo para qualquer um. Não exija que tomem a sua causa. É antes. Bem antes disso. Eu só quero olhar para você e não duvidar da chegada de Godot. Basta. O povo é de uma burrice. Não queira ser o povo, Vladimir. E evite que o povo seja você. Há seres numa proporção extremamente delicada, num equilíbrio extremamente instável. Há seres cuja solidão é necessária. Vamos juntos e com calma. Ele vai chegar.