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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Para Fabíola,


Rio de Janeiro, 24 de junho de 2010.

Fabíola. Escrevo-lhe para informar o seu papel neste ESPERANDO GODOT: Lucky. Você será tudo o que não quis ser desde o início. Será o fulano que fala um texto imenso e que deve estar decorado. Será o fulano que tem a corda no pescoço, será o cara que é usado de palanque para os outros chamarem atenção. Mas o que Lucky não contava, era que encontraria um corpo muito específico para nele se aportar. Um corpo cujos cabelos gritam sem nada falar. Cabelos mudos com força de furacão. Cabelos pós-dramáticos. Um corpo capaz da solução mais inusitada, da proposta mais estética, da sutileza mais acertada. Um corpo capaz de reverter o quadro e revelar as fundações. Capaz de encontrar uma porcaria qualquer capaz de validar toda uma encenação. Isso que escrevo não é uma questão, não é pergunta, não é dúvida. Escrevo-lhe para dizer o que eu como diretor estou lhe dando como obrigação: deverás arrumar o cenário sempre que ele se bagunçar. Isso não te impede de descobrir estratégias. Mas, acredite: é bom colocar suas luvas finas para não se cortar. É bom esse pragmatismo. É bom essa mão que diz tanto quanto uma boca possa dizer. É bom gravar esse texto no gravador e aprender a nos confundir se quem fala o texto é você ou a caixa de som. Você tem as referências, Lucky. Você não fala porque é mudo, mas porque escuta mais e sempre mais. Não fala porque vê. Não fala porque descobriu muito cedo que há outras maneiras de compreender como se pode guiar uma vida e/ou uma encenação teatral. Fala de Van Gogh e de Frida Kahlo. Mas fala nos revelando seus quadros. Você tem essa autonomia, você não é esse Lucky apertado, aprisionado. Você, Lucky, é a redenção deste Lucky mortificado. Deste Lucky cujo monólogo já foi mais de mil vezes encenado e sempre assim, lento, chato, incompreensível. O seu monólogo – você sabe disso – pode ser editado. Pode ser acelerado, pode se tornar mais grave, mais agudo, você aceita ser Lucky não para condená-lo, mas justamente para lhe permitir ser livre. Os objetos fora do lugar, é você quem pede ajuda para tirar essa e aquela porcaria daqui e as organizar. É você quem doa o seu corpo para ser escravo, para ilustrar essa história. Da mesma forma que é você quem tira o corpo fora quando bem entender. É quem surpreende com saídas que sequer poderíamos pensar. É quem propõe usos outros para o que sempre foi usado de um jeito específico. É estar atenta como nas raias. Se você fala pouco, é porque então escuta e vê com ainda mais precisão. Atenção às mãos. Você já pesquisou sobre a língua dos sinais ou vai ficar fingindo dizer algo que não está sendo dito? Você juntou a caixa de fósforos ou fingiu não tê-la visto? É preciso jogar com tudo. Mesmo que já se tenha colocado a máscara de cachorro, mesmo que já se tenha agüentado uma placa por mais de uma hora... Descubra-se Lucky, em cada segundo desta encenação. Ela é sua morada. E o que você está esperando? Que lhe dêem a palavra? E o que fará quando elas lhe forem dadas? Não lhe faço perguntas para que responda. Faço-lhe perguntas para que não se esqueça daquilo que já sabes: que a vida é uma constante busca por sentido. Peço-lhe: não nos deixe esquecer isso. Não nos deixe. Nós, nos deixe.