Rio de Janeiro, 24 de junho de 2010.
Fabíola. Escrevo-lhe para informar o seu papel neste
ESPERANDO GODOT: Lucky. Você será tudo o que não quis ser desde o início. Será
o fulano que fala um texto imenso e que deve estar decorado. Será o fulano que
tem a corda no pescoço, será o cara que é usado de palanque para os outros
chamarem atenção. Mas o que Lucky não contava, era que encontraria um corpo
muito específico para nele se aportar. Um corpo cujos cabelos gritam sem nada
falar. Cabelos mudos com força de furacão. Cabelos pós-dramáticos. Um corpo
capaz da solução mais inusitada, da proposta mais estética, da sutileza mais
acertada. Um corpo capaz de reverter o quadro e revelar as fundações. Capaz de
encontrar uma porcaria qualquer capaz de validar toda uma encenação. Isso que
escrevo não é uma questão, não é pergunta, não é dúvida. Escrevo-lhe para dizer
o que eu como diretor estou lhe dando como obrigação: deverás arrumar o cenário
sempre que ele se bagunçar. Isso não te impede de descobrir estratégias. Mas,
acredite: é bom colocar suas luvas finas para não se cortar. É bom esse
pragmatismo. É bom essa mão que diz tanto quanto uma boca possa dizer. É bom
gravar esse texto no gravador e aprender a nos confundir se quem fala o texto é
você ou a caixa de som. Você tem as referências, Lucky. Você não fala porque é
mudo, mas porque escuta mais e sempre mais. Não fala porque vê. Não fala porque
descobriu muito cedo que há outras maneiras de compreender como se pode guiar
uma vida e/ou uma encenação teatral. Fala de Van Gogh e de Frida Kahlo. Mas
fala nos revelando seus quadros. Você tem essa autonomia, você não é esse Lucky
apertado, aprisionado. Você, Lucky, é a redenção deste Lucky mortificado. Deste
Lucky cujo monólogo já foi mais de mil vezes encenado e sempre assim, lento,
chato, incompreensível. O seu monólogo – você sabe disso – pode ser editado.
Pode ser acelerado, pode se tornar mais grave, mais agudo, você aceita ser
Lucky não para condená-lo, mas justamente para lhe permitir ser livre. Os
objetos fora do lugar, é você quem pede ajuda para tirar essa e aquela porcaria
daqui e as organizar. É você quem doa o seu corpo para ser escravo, para
ilustrar essa história. Da mesma forma que é você quem tira o corpo fora quando
bem entender. É quem surpreende com saídas que sequer poderíamos pensar. É quem
propõe usos outros para o que sempre foi usado de um jeito específico. É estar
atenta como nas raias. Se você fala pouco, é porque então escuta e vê com ainda
mais precisão. Atenção às mãos. Você já pesquisou sobre a língua dos sinais ou
vai ficar fingindo dizer algo que não está sendo dito? Você juntou a caixa de
fósforos ou fingiu não tê-la visto? É preciso jogar com tudo. Mesmo que já se
tenha colocado a máscara de cachorro, mesmo que já se tenha agüentado uma placa
por mais de uma hora... Descubra-se Lucky, em cada segundo desta encenação. Ela
é sua morada. E o que você está esperando? Que lhe dêem a palavra? E o que fará
quando elas lhe forem dadas? Não lhe faço perguntas para que responda. Faço-lhe
perguntas para que não se esqueça daquilo que já sabes: que a vida é uma
constante busca por sentido. Peço-lhe: não nos deixe esquecer isso. Não nos
deixe. Nós, nos deixe.