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quarta-feira, 31 de março de 2010

O Parto de Godot

e outras encenações imaginárias: a rubrica como poética da cena. Luiz Fernando Ramos (Ed. Hucitec. São Paulo. 1999.)


"Em Beckett, a rubrica será tão importante na "leitura" que o espectador venha a fazer do espetáculo, se ali ela for concretizada, quando naquela feita por quem a lê como literatura dramática, nas páginas do livro. Ela estabelece uma ocupação física do palco que não pode ser desconsiderada pelo eventual operador daquelas instruções, sob pena de perder-se a consistência, como ficção, da peça." ( pág 53)

"...Mas, a dramaturgia de Beckett exige tal controle sobre a transformação das indicações cênicas em cena efetiva que, não obedecê-las, equivale a modificar ou omitir as falas das personagens." ( pág 53)

"O notável, em Beckett, é que em suas peças as rubricas têm o mesmo estatuto que a fala das personagens, tornando-se inadequado pensá-las como secundárias, ou menos importante, na garantia do desenvolvimento dramático. E, se no plano estrito de sua literatura dramática, a rubrica é, incontestavelmente, indispensável para articular a ficção, ela também será imprescindível na formalização e concretização cênicas. Por exemplo, a direção do movimento das personagens no palco apontada na rubrica responde a um desenho previsto pelo autor, que remete a uma situação concreta, a presença física e significante das personagens indo nesta ou naquela direção. Se na maior parte dos autores uma indicação como esta - a direção na qual uma personagem movimenta-se - é, de fato, secundária, em Beckett ela será vital. Mesmo com infinita variedade de modos de executá-la, não cumpri-la é não só trair o autor como alterar completamente o curso da ação dramática.
Estragon- Vamos ( Eles não se movem.)" (pág 54)


A presença da rubrica na obra "Esperando Godot" define uma teatralidade específica que caracteriza, enfim, uma cena beckettiana. Uma das características "é, exatamente, ter nos movimentos minunciosamente prescritos para as personagens - as quais, a despeito de infinita variabilidade de montagem para montagem, permanecerão sempre tão definidos como as falas dos diálogos - função dramática tão ou mais importante que os diálogos. É com este olhar específico sobre as rubricas que examina-se a dramaturgia de Beckett, buscando identificar-se uma teatralidade típica, implícita nas didascálias." ( pág 54)
"...Em Esperando Godot os comentários sobre a cena que está armada e transcorrendo são menos explícitos, pois, mesmo carregados de duplo sentido, não rasgam o tecido da ficção. A afirmação de Vladimir -"O essencial não muda nunca." -, seguida do complemento de Estragon - "Nada a fazer." - é ambígua o suficiente para sugerir que ainda estamos no terreno de Eleuthéria. O diálogo que evidencia melhor um colocar em xeque da representação dramática é aquele em que Vladimir e Estragon agem como um coro para comentar a própria ação.
V- Que tarde encantadora estamos passando?
E- Inesquecível.
V- E ainda não acabou.
E- Parece que não.
V- Está só começando.
E- É terrível.
V- É pior que estar no teatro.
E- No circo.
V- No Music Hall.
E- No circo.
Mais a frente, depois que Estragon avisa que irá apanhar uma cenoura e não sai do lugar, Vladimir comenta- "Isso está ficando verdadeiramente insignificante", ao que Estragon replica - "Ainda não o bastante". De fato, durante toda a peça é mantido um nível mínimo de ações físicas bem definidas, que não só garantem o desenvolvimento dramático como evitam o que seria o desmascaramento completo das personagens como puros mecanismos teatrais. A alternativa de tentar calçar as botas surge como uma bênção justificando a própria existência daquelas personagens. Como diz Estragon - "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe, heim, Didi?", ao que Vladimir, impaciente, replica - "Claro, claro, nós somos mágicos", chamando em seguida atenção do parceiro para a bota e a necessidade de calçá-la, " antes que a gente se esqueça". Na sequência do segundo ato, depois da entrada de Pozzo e Lucky e sob a pressão dos chamados por socorro de Pozzo, Vladimir desabafa sobre a precariedade das condições em que ele e seu companheiro se encontram.
"Vamos fazer o melhor que pudermos, antes que seja tarde demais" Vamos representar com dignidade, pelo menos uma vez, o papel que o destino cruel nos reservou. Que é que você me diz? ( Estragon não diz nada) É evidente também que, se ficarmos de braços cruzados, sem fazer nada, pesando os prós e os contras, também faremos justiça à nossa condição." (pág 57)
"Beckett sempre utilizou as rubricas para detalhar ações físicas independentes e concomitantes às falas das personagens." (pág 59)

des.esperando.GODOT#2

terça-feira, 30 de março de 2010

Oi eu sou Flávia.

Oi eu sou Flávia. muito prazer sou Adassa! Adassa é você! que ótimo! fiquei tentando descobrir quem você era pensei algumas vezes em algumas possibilidades mas olha que incrível não imaginava que você fosse assim parecida comigo, tive a impressão do Diogo dizer Flávia a Adassa é bem alta e me lembro que pensei poxa que chato não gosto de ter que conviver tão de perto com pessoas muito altas é incômodo pra mim que sou tão baixinha, e olha isso não é nada disso você e eu somos iguais assim como a Fabíola, sim a Fabíola é minha amiga, sim conheço Fabíola, a outra é Carolina, é Helena, é Carol, é Carolena, não, não, é assim mesmo, é uma só mesmo, é minha amiga também, pois é né que coisa são todas minhas amigas, sim e você não é amiga de ninguém, mas não, não é só com você as outras duas também não são amigas, ai que alívio não é? não é só com você. Olha lá a Fabíola! que linda de branco cabelos ruivos ou loiros eles nunca se definem pele branca, Fabíola tem a pele branca e tem carro, Fabíola tem um carro e um namorado e um sobrinho ou serão dois? eu tenho um sobrinho, ele é lindo! Sim, o Diogo, ele está falando sobre o café, o seu vício de café, deve ser a internet, é por causa do e-mail, um desespero só, coitado dele as vezes surta, surta mesmo! não menina, não é nada engraçado, é trágico, só que tudo é ficção, menos a dor, a dor é real, e câncer?câncer é real? oi? o que?Ai que desespero esse lugar é barulhento, não consigo te ouvir direito espero que à noite faça menos barulho, está na hora, precisamos ir embora, sim precisamos ir, Adassa disse não querida, Fabíola disse estar com fome, eu vou de bicicleta, Diogo roubou minha água e Carolena? não chegou? não ainda não. E godot? Cadê Godot? gente, é mesmo! cadê Godot???? Ué, deve estar com Carolena. é verdade, é possível. Será que vem de avião?

segunda-feira, 29 de março de 2010

Ensaio #1

Sala Vianinha – Escola de Comunicação (ECO/UFRJ) – 29/03/2010 – 13h às 16h30
Diogo, Adassa, Flávia e Fabíola

Como o elenco não esteve completo neste primeiro encontro, nos focamos em discussões proporcionadas pela leitura do projeto. Atentamos para alguns pontos como a noção da espera. O que se espera, como se espera… Muito falamos sobre a noção de espera agora. Deste tempo pelo qual lidamos com a espera hoje. Reconhecemos a espera – aquela apresentada no texto de Beckett – mas notamos como utilizamos ferramentas distintas para lidar com a mesma. Falamos de tapear, de camuflar uma espera com alguma outra coisa, qualquer. Falamos dessa vida virtualizada. Orkut, facebook… Falamos sobre teatro. Sobre como criar uma obra – esta montagem – e sobre quais esperas ela inaugura em nós. Descobrimos que, diferentemente de Godot, o público inevitavelmente vai chegar até nós. Ou nós que chegaremos até ele. Falamos das personagens. Dos vagabundos. Apesar de concordarmos que eles poderiam ser toda e qualquer coisa. Que o espaço da rubrica de Beckett poderia ser todo e qualquer espaço. Falamos do processo pelo qual o texto afasta os personagens de uma possível identificação. Afinal, são vagabundos. Isso nos chamou para o fato de querermos aproximar e não afastar. Isso nos trouxe para a realidade do ser ator, do ser atriz, artista. O nosso movimento é explícito. A nossa angústia, se realmente vier a existir durante o processo, será esta. Caso não, lidaremos com o tudo aquilo pelo qual fomos acometidos. Falamos do que esperamos em relação ao projeto. Desejamos que fosse este projeto do nosso tamanho. E eu desejei que conseguíssemos crescer e diminuir, na vontade de manipular o conteúdo. Falamos sobre a importância de ser humano. Digo, da importância de ser complexo, naturalmente complexo. Feliz e infeliz. Ser a unidade dos rótulos. Ser humano. Falamos sobre ensaios, sobre horários. Falamos sobre desejo, saciedade, busca, sobre gestalt. Profanação. Muito falamos sobre que ideia é essa de fazer Godot chegar. Ainda não está claro, eu sei. Mas vamos conquistar isso. Dei o exemplo do pote de Nutella que irrompe a cena é devorado digerido e nos faz refém mais outra vez de um desejo seguinte, em gestação. É preciso exemplificar. A gente come o Godot mal ele chega até nós. E depois, logo depois, manifestamos uma fome outra por outro Godot que nos possa saciar. Um primeiro encontro. Para o próximo, começaremos a partir dos textos de Deleuze (O Ato de Criação) e Bogart (Terror, Desorientação e Dificuldade). Cada atriz levou para casa uma pergunta. Quer dizer, cada uma achou que levou para casa uma pergunta. Quando na verdade todas levaram a mesma pergunta.

Nossa montagem de ESPERANDO GODOT é um estudo sobre o quê?

Como jogar com verdade e mentira? Aliás, o que é verdade e o que é mentira? Como jogar a verdade como mentira? Como mentir a verdade? Como criar movimento sem mover o vento? Como falar sem fazer barulho? Quantos minutos cabem num silêncio? Quantas pausas num barulho? Podemos ser aquilo que queremos? Na quarta haverá um segundo ensaio e a partir de semana que vem, a coisa desanda. Quer dizer, anda. Falamos da péssima acústica da Sala Vianinha. E do Gláucio Gill. Falamos no sentimento de absurdidade de Camus. E em Freud. Porque ficamos alguns minutos falando de morte. De Caio Fernando Abreu ao dizer que tudo o que se completa é porque deseja morrer. Estaríamos esperando a morte? Aqueles presos que assistiram a apresentação de Godot numa penitenciária? As coisas estão se multiplicando dentro da minha cabeça. Imagino que dentro das nossas. É como disse a Adassa, falar nisso tudo vai alimentando um bichinho dentro de mim que parece querer sair pelos meus olhos… Pois que seja. Vamos alimentar os bichos. Até que criem asas. E saiam despedaçando a nossa carcaça. Está faltando alguma coisa, atrizes? Digam aí… Foi uma overdose esse encontro de hoje. Que assim seja.

Como começar?

Bom, se é mesmo um jogo, então vamos colocar as cartas sobre a mesa e sondar os ânimos. A partir destes – sentiremos – para onde se deve ir. Para onde não se deve ir. Primeiro dispor as cartas e depois perceber se a configuração estimula ou não. Mas e se não estimular? A gente põe o não-estímulo sobre a mesa e o disseca. Faremos com que grite. Vamos fazê-lo gemer. Fazer, no final das contas. Tentar. Do verbo em tentação. Perder-se em tentativas. Naquilo que também pode ser em vão. Mas que antes disso, apenas é. Do verbo ser.

Nossa montagem de ESPERANDO GODOT é um estudo sobre o quê?

café figurino texto trilha casa

sábado, 27 de março de 2010

Falo.......

Eu tenho tanto para aqui falar mas com palavras não saberei dizer. Sala de ensaio. Já. Os ensaios começam já nesta segunda-feira dia 29 de março. Finalmente. Elenco completo. Menos palavras, mais ações. Terminando mil leituras. E bota nisso Freud (ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER), Debord (A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO), Camus (O MITO DE SÍSIFO) e artigos mil variados. Tudo para colocar em questão este processo de criação. Pois se estamos falando com este ESPERANDO GODOT do processo criacional, pois que então possamos olhar para o momento da criação e reconhecer suas qualidades. Nem sempre vai ser bonito e tranquilo e divertido e seguro. Isso seria no mínimo suspeitável.

Meus cabelos vão ficar brancos como os de Lucky. Mas como o Lucky que imagino tem um mega-hair, usa salto alto e é tipo Beyonce, devo dizer, acabarei tingindo os cabelos para a estreia.

Bobeiras a parte, as bobeiras são essenciais.
Não sei por onde começar, e isso é um ótimo começo.
Não sei se quero saber por onde começar, o começo portanto vai ser no mínimo divertido.
Eu nunca escrevi tanta coisa desnecessária neste blog, e preciso aceitar que elas existem.

Sem dúvida alguém melhor do que eu poderia fazer este trabalho.
No entanto, seria ele o mesmo?

Daqui a uns dias eu estarei melhor. Ou não. Quem estiver acompanhando o blog, deixe seus comentários por aí. Eles são utéis, acreditem. Estamos buscando Godot e não esperando…

sexta-feira, 26 de março de 2010

“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio”

“Não estamos meramente mais cansados por causa de ontem, somos outros, não mais do que éramos antes da calamidade de ontem. [...] As aspirações de ontem foram válidas para o eu de ontem, não para o de hoje” (Beckett, 2003, p. 12).

Caos contemporâneo

O homem contemporâneo está paralisado pela confusão tanto do seu mundo interior quanto do mundo exterior. Sua personalidade é fragmentada; sua consciência está em conflito e em constante fluxo. Ele é incapaz de ter certeza nas suas percepções ou mesmo expressar as percepções de modo a estar habilitado a se comunicar. De que maneira então ele pode agir como um Eu único? O mundo exterior, privado de idéias absolutas, longe tanto do paraíso quanto do inferno, está imerso num estado dinâmico de caos ainda maior. ( Celso de Araujo Oliveira Jr. “Samuel Beckett – o retrato do artista enquanto crítico”)

Quem desespera não pode morrer. Dessa maneira, como um punhal não serve para matar pensamentos, também o desespero, verme imortal, fogo inextinguível, não devora a eternidade do eu, que é seu próprio sustentáculo. [...] Bem longe de consolar o desesperado, ao contrário, o insucesso do seu desespero em destruí-lo é uma tortura. (Kierkegaard, 2003, p. 24)

...Para Beckett tanto quanto para Sartre, o homem tem o dever de encarar a condição humana como reconhecimento de que a raiz de nossa existência está no nada, a liberdade, e a necessidade de nos criarmos constantemente por intermédio de uma sucessão de escolhas. (Esslin, 1968, p. 54)

quinta-feira, 25 de março de 2010

“Terror, Desorientação e Dificuldade” por Anne Bogart

Por Anne Bogart
Tradução: Diogo Liberano

Como uma diretora fazendo teatro na beira do século XXI, eu quero examinar o papel de certos aspectos específicos do processo de criação, incluindo o papel do embaraço, o papel da violência, o papel do estereótipo, o papel do humor, o papel da dúvida, o papel do interesse e o papel da memória cultural e da tradição. Eu começo aqui com uma das experiências humanas mais primárias e básicas: o terror. Qual é o papel do terror, da desorientação e da dificuldade no meu trabalho e no trabalho de outros artistas de teatro?

Meus primeiros encontros com teatro foram surpreendentes e me expuseram a uma arte viva com um inominável mistério e perigo. Essas experiências muito cedo tornaram difícil para mim se relacionar com alguma arte que não tivesse as raízes em alguma forma de terror. A energia das pessoas que enfrentam e incorporam o seu próprio terror é genuína, palpável e contagiosa. Em combinação com o profundo senso de jogo de artistas, o terror torna-se atraente no teatro tanto no processo criativo como na experiência vivida por uma platéia.

*

Eu nasci numa família de marinheiro e nós sempre mudávamos a cada um ou dois anos para uma nova base naval em outra parte do país ou do mundo. Minhas referências culturais foram os filmes da Disney, coquetéis e porta-aviões. Minha primeira pincelada com terror em arte aconteceu num parque em Tóquio, Japão, quando eu tinha seis anos de idade. Um enorme rosto pintado a branco surgiu saindo de um corpo imenso e multicolorido. Eu me escondi, aterrorizada, atrás da saia da minha mãe. Essa visão horrenda e bonita foi a minha primeira exposição a um ator fantasiado numa máscara. Alguns meses depois na mesma cidade, eu assisti aterrorizada a enormes altares de madeira sendo carregados por homens japoneses bêbados por ruas de Tóquio durante um dia sagrado. Os homens bêbados e os altares esporadicamente esmagavam vitrines de lojas. Eles pareciam fora de controle, fora de suas consciências e totalmente incapazes de esquecerem tudo aquilo.

Com quinze anos, quando meu pai foi postado em Newport, Rhode Island, eu vi uma primeira apresentação profissional de teatro produzida pela Trinity Repertory Company em Providence, Rhode Island. O Fundo Nacional de Doação Humanitária garantiu à companhia dinheiro suficiente para que recebesse estudantes secundaristas de todo o estado em seu teatro para verem suas peças. Eu era uma dessas estudantes e viajei à Providence num ônibus escolar grande e amarelo para assistir Macbeth. A produção me aterrorizou, desorientou e me selvagerizou. Eu não pude focar minha atenção para a ação. As bruxas saltavam inesperadamente do teto, a ação nos envolvia em grandes corridas e eu não entendia as palavras. A incomum língua falada era Shakespeare e a fantástica linguagem visual, a qual eu também desconhecia, foi meu primeiro encontro com a linguagem poética do palco, pela qual tamanho e escala eram alterados. A experiência foi assustadora mas convincente. Eu não entendi a peça, mas soube instantaneamente que gastaria o resto da minha vida na caça por aquele universo notável. Naquele dia em 1967, eu recebi a minha primeira lição como diretora: nunca falar à platéia. Ficou imediatamente claro para mim que a experiência teatral não era para que nós entendêssemos o sentido da peça ou o significado da encenação. Nós éramos convidados para um mundo único, uma arena que transformava tudo previamente estabelecido. A Trinity Company poderia ter facilmente usado o grande subsídio recebido para facilmente presentear crianças e preencher suas demandas escolares. Ao contrário, eles nos apresentaram uma visão complexa e extremamente pessoal à força, num estilo áspero. A produção e os artistas envolvidos falaram a mim diretamente de uma forma visceral e fantástica.

A maioria das experiências notáveis que eu tive no teatro me preencheu com incertezas e desorientação. Eu posso, de repente, não reconhecer um prédio que antes me era familiar ou não poderia diferenciar cima de baixo, perto de longe, grande de pequeno. Atores que eu pensei que conhecesse são inteiramente irreconhecíveis. Eu geralmente não sei se eu odeio ou se amo o que estou experienciando. Eu observo que eu estou sentada adiante, não inclinada para trás. Essas produções grandiosas são geralmente longas e difíceis; eu me sinto separada e um pouco fora da minha essência. E mesmo assim eu sou alguém modificada quando a jornada se completa.

*

Nós nascemos em meio ao terror e ao tremor. De frente ao nosso terror, ante ao incontrolável caos do universo, nós rotulamos o máximo que conseguimos com a linguagem na esperança de, por já ter nomeado um objeto antes, passar a não mais temê-lo. Essa rotulação nos dá uma sensação de segurança ao mesmo tempo em que mata o mistério daquilo rotulado, removendo a vida e o perigo para fora do que foi definido. A responsabilidade do artista é trazer a potencialidade, o mistério, o terror e o tremor de volta. James Baldwin escreveu, “A finalidade da arte é trazer à tona as perguntas que foram escondidas nas respostas”. O artista tenta a indefinição, para apresentar o momento, a palavra, o gesto como novo e cheio de um potencial incontrolável.

Eu me tornei uma diretora de teatro sabendo inconscientemente que eu teria que usar o terror pessoal da minha vida como artista. Eu tive que aprender a trabalhar em parceria e não com medo em relação a este terror. Eu me senti aliviada em descobrir que o teatro é um espaço útil para concentrar essa energia. Alheio a quase todo caos incontrolável da vida, eu pude criar um espaço de beleza e um senso de comunidade. Nos espaços mais profundos da dúvida e da dificuldade, eu encontrei coragem e inspiração nos meus colaboradores. Tornamo-nos capazes de criar uma atmosfera de boa vontade, intensidade e amor. Eu criei um refúgio para mim, para os atores e para platéias através desta metáfora que é o teatro.

Eu acredito que a função do teatro é a de nos atentar para a grande estrutura humana, de nos lembrar do nosso terror e de nossa humanidade. Nas nossas vidas cotidianas, vivemos em constantes repetições de hábitos padronizados. A maioria de nós dorme no decorrer de nossas vidas. A arte deve oferecer experiências que alterem esses padrões, acordando o que está adormecido, e nos lembrando do nosso terror original. O ser humano primeiro criou o teatro em resposta ao terror cotidiano da vida. Das pinturas nas cavernas às danças ao redor de inúmeras fogueiras, de Hedda Gabler erguendo sua pistola à desintegração de Blanche Dubois, nós criamos formas esperançosas para nossas aflições. Eu descobri que o teatro que não endereça o terror não possui energia. Nós criamos sob o medo, não a partir de um lugar seguro. De acordo com o físico Werner Heisenberg, artistas e cientistas compartilham uma abordagem em comum. Eles começam seus trabalhos com uma mão firme desejando algo específico enquanto a outra mão está sobre o desconhecido. Nós precisamos acreditar em nós mesmos para entrar nesse abismo abertos, com autoconfiança, apesar dos desequilíbrios e vulnerabilidades. Como acreditar o bastante em nós mesmos, em nossos colaboradores e nas nossas habilidades a partir do terror que vivenciamos nesse momento da partida, do início?

William Hurt, o ator, recentemente entrevistado no The New York Times, disse, “Aqueles que funcionam por medo, procuram segurança, os que funcionam pela confiança, buscam liberdade”. Essas duas possibilidades influenciam dramaticamente o processo criativo. A atmosfera do espaço de ensaio, portanto, pode estar imbuída tanto de medo como por confiança. As escolhas nos ensaios são feitas baseadas num desejo de segurança ou numa busca por liberdade? Eu estou convencida que as escolhas mais dinâmicas e emocionantes são feitas quando há confiança no processo, nos artistas e no material. O saldo atrativo em um trabalho é o amor, a confiança e um senso de humor; confiança nos colaboradores e o ato criativo em ensaio, amor pela arte e um senso de humor por sobre a tarefa impossível. Estes são elementos que trazem graça às situações em sala de ensaio e sobre um palco. Em confronto com o terror, a beleza é criada e, então, há o encanto.

Eu quero criar um teatro que é cheio de terror, beleza, amor e crença no potencial de mudança inato do ser humano. A responsabilidade começa nos sonhos. Como eu posso começar a trabalhar com esse espírito? Como eu posso trabalhar, não para subjugar, mas para abraçar o terror, a desorientação e a dificuldade?

*

Toda vez que eu começo uma nova produção eu me sinto como se estivesse fora da minha medida; sinto que eu não sei nada e não tenho noção alguma de como começar e estou certa de que alguma outra pessoa deveria estar fazendo meu trabalho, alguém mais seguro, que saiba o que precisa ser feito, que seja realmente profissional. Sinto-me desequilibrada, desconfortável e deslocada. Eu sinto algo como um pretexto. Eu geralmente encontro um caminho para transpor aquilo sobre a mesa de trabalho para a produção, onde as discussões necessárias, análises e leituras acontecem, mas sempre um momento de medo chega quando já é hora de colocar algo no palco. Como algo pode ser correto, verdadeiro ou apropriado? Eu desesperadamente tento imaginar alguma desculpa para fazer algo mais, para prorrogar um pouco mais. E quando nós começamos de fato a trabalhar no palco, tudo o que deveríamos fazer ali soa artificial, arbitrário e afetado. Eu tenho certeza que os atores pensam que eu estou louca. A todo o momento em que o dramaturgo se aproxima da sala de ensaios eu sinto que a aquilo que os atores estão fazendo não reflete nada da nossa discussão dramatúrgica. Eu me sinto pouco sofisticada e superficial. Por sorte, depois de um limite com essa dança do absurdo, eu começo a observar que os atores começam a transformar aquela encenação idiota em algo que me entusiasma e em relação ao qual eu começo a responder.

Eu falei com inúmeros diretores de teatro e percebi que eu não estou sozinha nessa sensação de estar fora do eixo no início dos ensaios. Nós todos trememos diante da impossibilidade do começo. É importante lembrar que um trabalho de direção, com qualquer artista, é intuitivo. Muitos jovens diretores cometem o grande erro de presumir que direção diz respeito a ser controlado, a dizer ao outro o que precisa ser feito, ter ideias e receber aquilo que se pediu. Eu não acredito que estas habilidades são as qualidades necessárias para um bom diretor ou para um teatro excitante. Dirigir diz respeito a sentimentos, é sobre estar numa sala com outras pessoas – com atores, com designers, com uma platéia – é sobre sentir o tempo e o espaço, sobre respiração e resposta integral àquilo que se tem em mãos, sendo capaz de mergulhar e encorajar um mergulho rumo ao desconhecido num momento chave. David Salle, o pintor, disse numa entrevista, “Eu sinto que a única coisa que realmente importa na arte e na vida é ir contra o fluxo da literalidade e da mental-literalidade para insistir e viver uma vida da imaginação. Uma pintura tem que ser a experiência ao invés de apontá-la. Eu quero ter e dar acesso ao sentimento. Esse é o mais arriscado e importante caminho para conectar a arte ao mundo – para fazê-la viva. O resto se trata apenas de eventos usuais”.

Eu sei que eu não posso me sentar quando o trabalho está acontecendo sobre o palco. Se eu sento, um enfraquecimento entra em jogo. Eu dirijo a partir de impulsos do meu corpo em resposta ao palco, ao corpo dos atores, as suas inclinações. Se eu me sento eu perco a minha espontaneidade, minha conexão comigo mesma e com o palco, com os atores. Eu tento amaciar meus olhos, ou seja, não olhar com muita rigidez ou com muito desejo, porque a visão é mais dominante e expressiva que os outros sentidos.

Quando eu estou perdida nos ensaios, quando estou bloqueada e não tenho ideia do que fazer a seguir ou como resolver um problema, eu sei que é então o momento de dar um salto. Como dirigir é intuitivo, isso envolve caminhar com tremor por sobre o que é desconhecido. É ali, naquele momento, naquele ensaio, que eu devo dizer, “Eu sei!” e começar a caminhar em direção ao palco. Durante a crise dessa caminhada, algo deve acontecer: algum insight, alguma ideia. A sensação dessa caminhada em direção ao palco, rumo aos atores, me sugere a queda para dentro de um abismo traiçoeiro. A caminhada estabelece uma crise na qual a inovação deverá acontecer e a invenção precisará transpirar. Eu invento a crise num ensaio para sair do meu próprio caminho. Eu a crio, apesar de mim mesmo e das minhas limitações e hesitações. No desequilíbrio e na queda mora o potencial de criação. Quando as coisas começam a despencar nos ensaios, a possibilidade de criação existe. O que havíamos planejado anteriormente, o que tínhamos em mente naquele momento já não é interessante. Rollo May escreveu que todos os artistas e cientistas, quando estão fazendo seu melhor trabalho, sentem como se não estivessem fazendo uma criação, eles sentem como se estivessem sendo atravessado por uma fala. Como conseguir sair de nossos próprios caminhos durante os ensaios?

A vitalidade, ou energia, em qualquer trabalho é um reflexo da coragem de um artista diante de seu próprio terror. Para mim, o aspecto essencial de um trabalho é a sua vitalidade. A criação da arte não é uma fuga da vida mas uma penetração na mesma. Eu recentemente vi uma retrospectiva dos primeiros trabalhos com dança de Martha Graham. Eu estava assombrada que trabalhos como Primitive Mysteries tem agora cinqüenta anos e ainda assim são perigosos e ariscos. Graham uma vez escreveu para Agnes De-Mille:

Tem uma vitalidade, uma força de vida, uma pressa que é traduzida através de você como ação, e porque só há uma de você durante todo o tempo, essa expressão é única. E se você bloqueia isso, isso nunca irá existir por nenhum outro meio e se perde. O mundo não vai ter isso. Não é sua obrigação determinar o quão bom possa ser; nem o quão valioso isto seja; nem como isto se relaciona com outras expressões. É sua obrigação manter isto limpo e direto, para manter o canal aberto. Você não tem que acreditar em você mesma ou no seu trabalho. Você tem que se manter aberta e atenta às urgências que a motivam.

Vitalidade na arte é resultado de articulação, energia e diferenciação. Toda ótima obra de arte é uma obra diferenciada. Nossa consciência das diferenças entre as coisas ao redor nos toca pela fonte de terror. É mais confortável sentir semelhanças, enquanto não aceitamos o terror das diferenças a fim de criar uma arte vital. A terrível verdade é que nem duas pessoas são iguais, nem dois flocos de neve são iguais, nem sequer dois momentos são iguais. Os físicos agora dizem que nada nos toca, nada no universo tem contato; há apenas movimento e mudança. Isso é uma noção apavorante dada a nossa tentativa em fazer contato com o outro. A habilidade de ver, experienciar e articular as diferenças entre as coisas é a diferenciação. Ótimas obras artísticas incorporam essa noção de diferenciação sob variados modos. Uma pintura excepcional é aquela na qual, por exemplo, uma cor é altamente e visivelmente diferenciada de outra, pintura na qual nós vemos as diferenças em texturas, formas, relações espaciais. O que fez Glenn Gould uma musicista brilhante foi a sua abertura à alta diferenciação musical, que acabou por criar a intensidade extática de sua produção. No melhor teatro, momentos são altamente diferenciados. A habilidade do ator reside na diferenciação de um momento para o outro. Um grande ator parece perigoso, imprevisível, cheio de vida e diferenciação.

*

Nós não somente precisamos usar nosso terror da diferenciação como também o nosso terror do conflito. Os americanos encontram-se aborrecidos com a doença da concordância. No teatro, nós geralmente presumimos que colaboração significa estar de acordo. Eu acredito que concordâncias demais constroem produções sem vitalidade, sem dialética, sem verdade. Acordos sem reflexo mortificam a energia de um ensaio. Eu não acredito que colaboração signifique fazer mecanicamente o que o diretor dita. Sem resistência não há fogo. Os alemães têm uma palavra útil para a qual não há uma equivalente apropriada em inglês: auseinandersetzung. A palavra, literalmente “colocar uma parte separada da outra”, é geralmente traduzida para o inglês como “argumento”, uma palavra com conotações geralmente negativas. Quanto mais feliz eu fosse estar num ambiente de ensaio agradável e despreocupado, mais ainda meu melhor trabalho se derivaria da auseinandersetzung, que significa para mim que para criar nós devemos colocar uma coisa ao lado da outra. Isso não significa, “Não, eu não gosto da sua abordagem, ou de suas ideias”. Não significa, “Não, eu não vou fazer o que você está me pedindo para fazer”. Significa, “Sim, eu vou incluir a sua sugestão, mas eu virei ao encontro dela por outro ângulo e somarei estas novas noções”. Isto significa que nós atacamos um ao outro, que nós vamos nos chocar; isso significa que nós podemos argumentar, duvidar uns dos outros, oferecer alternativas. Significa que eu posso me sentir tola ou despreparada. Que ao invés de me cegar enchendo-me de instruções, nós examinaremos escolhas no calor dos ensaios, através da repetição, do teste e pelo erro. Eu percebi que os artistas de teatro alemães tendem a trabalhar muito com auseinandersetzung, que começa débil mas pode criar violentas produções. Os americanos são muito concernentes aos acordos, que podem criar uma arte sem profundidade.

As palavras neste ensaio são mais fáceis de serem escritas do que praticadas em ensaios. Em momentos de confrontação com terror, desorientação e dificuldade, a maioria de nós quer dizer que já é noite e ir para casa. Esses pensamentos são elaborados como reflexos e noções de ajuda que nos dão outras perspectivas, para nos ajudar a trabalhar com mais fé e coragem. Eu gostaria de terminar com uma citação de Brian Swimme:

De que forma podemos expressar sentimentos mas justamente pelo aprofundamento neles? Como podemos capturar o mistério da angústia sem que nos tornemos alguém angustiado? Shakespeare viveu sua vida, atordoado pela sua majestade, e em sua escrita tentou apreender o que ele sentia, tentou capturar essa paixão de forma simbólica. Feito isca pela intensidade de sua vida, ele representou esta intensidade em linguagem. E por quê? Porque a beleza o atordoava. Porque a alma não pode confinar tais sentimentos.

***

Em busca do nada

Bram Van Velde



Pierre Tal Coat

André Masson

quarta-feira, 24 de março de 2010

Teatro de Guerra

" As pessoas em Sarajevo levam uma vida angustiante; esse era um Godot angustiante." Sontag

Em 1993, Susan Sontag encenou "Esperando Godot de Samuel Becket, em Sarajevo, na Bósnia, em plena guerra civil. O espetáculo estreou em um cenário desolador: uma cidade sitiada e gélida, sob constantes ataques. Com luz de velas, som de bombas e tiros e atores cansados, deprimidos e mal alimentados.

"É claro, há uma diferença entre o primeiro ato e a repetição do primeiro ato, que é o segundo ato. Não foi apenas um dia que passou. Tudo está pior. Lucky não consegue mais falar. Pozzo agora está patético e cego. Vladimir entregou-se ao desespero. Talvez eu tenha sentido que o desespero do primeiro ato era o suficiente para a platéia de Sarajevo e quisesse poupá-los de uma segunda vez, em que Godot não vem. Talvez eu quisesse sugerir, de forma subliminar, que o segundo ato poderia ser diferente. Pois, precisamente, Esperando Godot era uma ilustração tão adequada dos sentimentos dos habitantes de Sarajevo, agora - privação, fome, desalento, a espera de que uma potência estrangeiro e arbitrária os salvasse ou os tomasse sob a sua proteção - , que parecia também adequado encenar Esperando Godot, Primeiro Ato." ( pág 399. SONTAG, Susan. Questão de Ênfase. Ed. Companhia das letras. 2005. São Paulo.)

Questão de Ênfase, Susan Sontag - capítulo "Esperando Godot em Sarajevo" pág 381
http://books.google.com.br/books?id=m5VPpIOLYn8C&pg=PA381&lpg=PA381&dq=esperando+godot+sarajevo+susan&source=bl&ots=PjfakEz&sig=RqMzsfyqVjG69Lbh8vVaOvswLcs&hl=pt--BR&ei=4KWps503NcSOuAfy5p1T%sa=Xoi=book

terça-feira, 23 de março de 2010

“O Ato de Criação” por Gilles Deleuze

O autor de O Anti-Édipo, Imagem-Movimento e Imagem-tempo define a arte como ato de resistência à sociedade de controle em palestra a estudantes de cinema em 1987.

Eu gostaria também de formular algumas perguntas. Formulá-las a vocês e formulá-las a mim mesmo. Seria algo como: o que exatamente vocês fazem, vocês, homens do cinema? E eu, o que exatamente eu faço, quando faço ou espero fazer filosofia?

Poderia formular a pergunta de outra maneira: o que é ter uma idéia em cinema? Se fazemos ou queremos fazer cinema, o que significa ter uma idéia? O que acontece quando dizemos: “Ei, tive uma idéia”? Porque, de um lado, todo mundo sabe muito bem que ter uma idéia é algo que acontece raramente, é uma espécie de festa, pouco corrente. E depois, de outro lado, ter uma idéia não é algo genérico. Não temos uma idéia em geral. Uma idéia, assim como aquele que tem a idéia, já está destinada a este ou àquele domínio.

Trata-se ou de uma idéia em pintura, ou de uma idéia em romance, ou de uma idéia em filosofia, ou de uma idéia em ciência. E obviamente nunca é a mesma pessoa que pode ter todas elas. As idéias, devemos tratá-las como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão, de sorte que eu não posso dizer que tenho uma idéia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma idéia em tal ou tal domínio, uma idéia em cinema ou uma idéia em filosofia.

O que é ter uma idéia em alguma coisa?

Parto do princípio de que eu faço filosofia e vocês fazem cinema. Admitido isso, seria muito fácil dizer que a filosofia, estando pronta para refletir sobre qualquer coisa, por que não refletiria sobre o cinema? Um verdadeiro absurdo. A filosofia não é feita para refletir sobre qualquer coisa. Ao tratar a filosofia como uma capacidade de “refletir-sobre”, parece que lhe damos muito, mas na verdade lhe retiramos tudo. Isso porque ninguém precisa da filosofia para refletir. As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas, ou os críticos de cinema, ou então aqueles que gostam de cinema. Essas pessoas não precisam da filosofia para refletir sobre o cinema. A idéia de que os matemáticos precisariam da filosofia para refletir sobre a matemática é uma idéia cômica. Se a filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela não teria nenhuma razão para existir. Se a filosofia existe, é porque ela tem seu próprio conteúdo.

Qual é o conteúdo da filosofia?

Muito simples: a filosofia é uma disciplina tão criativa, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar ou inventar conceitos. E os conceitos não existem prontos e acabados numa espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Os conceitos, é preciso fabricá-los. É claro que os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos. Não nos dizemos, um belo dia: “Ei, vou inventar um conceito!”, assim como um pintor não se diz: “Ei, vou pintar um quadro!”, ou um cineasta: “Ei, vou fazer um filme!”.

É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade – que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista – faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o cinema.
Eu digo que faço filosofia, ou seja, que tento inventar conceitos. E vocês que fazem cinema, o que vocês fazem?

O que vocês inventam não são conceitos – isso não é de sua alçada –, mas blocos de movimento/ duração. Se fabricamos um bloco de movimento/duração, é possível que façamos cinema. Não se trata de invocar uma história ou de recusá-la. Tudo tem uma história. A filosofia também conta histórias. Histórias com conceitos. O cinema conta histórias com blocos de movimento/duração. A pintura inventa um tipo totalmente diverso de bloco. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de movimento/duração, mas blocos de linhas/cores. A música inventa um outro tipo de bloco, também todo peculiar. Ao lado de tudo isso, a ciência não é menos criadora. Eu não vejo tantas oposições entre as ciências e as artes.

Se pergunto a um erudito o que ele faz, também ele inventa. Ele não descobre – a descoberta existe, porém não é por meio dela que definimos uma atividade científica como tal –, mas cria como se fosse um artista. Um erudito, coisa bem simples, é alguém que inventa ou cria funções. E ele está sozinho nessa empreitada. Um erudito, na condição de erudito, nada tem a ver com conceitos. É justamente para isso – e felizmente – que existe a filosofia. Em compensação, existe uma coisa que só o erudito sabe fazer: inventar e criar funções. O que é uma função? Existe uma função sempre que há correspondência uniforme de pelo menos dois conjuntos. A noção de base da ciência – e não desde ontem, mas desde muito tempo – é a noção de conjunto. Um conjunto não tem nada a ver com um conceito. Sempre que você puser conjuntos em correlação uniforme, você obterá conjuntos e poderá dizer: “Eu faço ciência”.

Se uma pessoa qualquer pode falar com outra qualquer, se um cineasta pode falar com um homem de ciência, se um homem de ciência pode ter algo a dizer a um filósofo e vice-versa, é na medida e em função das atividades criativas de cada um. Não que haja espaço para falar da criação – a criação é antes algo bastante solitário –, mas é em nome de minha criação que tenho algo a dizer para alguém. Se eu alinhasse todas essas disciplinas que se definem pela sua atividade criadora, diria que há um limite que lhes é comum. O limite que é comum a todas essas séries de invenções, invenções de funções, invenções de blocos de duração/movimento, invenção de conceitos, é o espaço-tempo. Se todas as disciplinas se comunicam entre si, isso se dá no plano daquilo que nunca se destaca por si mesmo, mas que está como que entranhado em toda a disciplina criadora, a saber, a constituição dos espaços-tempos.

Em Robert Bresson [diretor francês, 1907], caso bastante conhecido, raramente existem espaços inteiros. São espaços que podemos chamar desconexos. Há, por exemplo, um canto, um canto de um quarto. Depois vemos um outro canto, ou então um pedaço da parede. Tudo ocorre como se o espaço bressoniano se apresentasse como uma série de pequenos fragmentos cuja conexão não está predeterminada. Existem grandes cineastas que empregam, ao contrário, espaços de conjunto.

Não digo que seja mais fácil manejar um espaço de conjunto. Mas o espaço de Bresson constitui um tipo de espaço particular. Sem dúvida, ele foi retomado mais tarde, serviu de modo bastante criativo para outros, que o renovaram. Mas Bresson foi um dos primeiros a construir o espaço com pequenos fragmentos desconexos, ou seja, pequenos fragmentos cuja conexão não é predeterminada. E eu diria o seguinte: no limite de todas as tentativas de criação, existem espaços-tempos. É só isso que existe. Os blocos de duração/movimento de Bresson tenderão a esse tipo de espaço, entre outros.
A pergunta então é essa: esses pequenos fragmentos de espaço visual cuja conexão não é dada previamente são conectados por meio de quê? Pela mão. Não se trata de teoria nem de filosofia. Não é um processo dedutivo. O que quero dizer é que o espaço de Bresson é a valorização cinematográfica da mão no seio da imagem. A junção de pequenos trechos de espaço bressoniano pelo fato mesmo de serem trechos, pedaços desconexos do espaço, pode ser exclusivamente uma junção manual. Daí a exaustão da mão em todo o seu cinema.

Desse modo, o bloco de extensão/movimento de Bresson recebe como característica própria desse criador, desse espaço, o papel da mão, que irrompe em seus limites. Somente a mão é capaz de operar efetivamente as conexões de uma parte a outra do espaço. E Bresson é sem dúvida o mais importante cineasta a ter reintroduzido no cinema os valores táteis. Não só porque ele sabe captar as mãos em imagens admiráveis. Se ele sabe captar admiravelmente as mãos em imagens é porque ele precisa delas. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade.

Mais uma vez, ter uma idéia em cinema não é a mesma coisa que ter uma idéia em outro assunto. Contudo há idéias em cinema que também poderiam valer em outras disciplinas, que poderiam ser excelentes em romances, por exemplo. Mas elas não teriam, absolutamente, os mesmos ares. Além disso, existem idéias no cinema que só podem ser cinematográficas. Não importa. Mesmo quando se trata de idéias em cinema que poderiam valer em romances, elas já estão empenhadas num processo cinematográfico que faz com que elas estejam predestinadas. Esse é um modo de formular uma pergunta que me interessa: o que faz com que um cineasta tenha vontade de adaptar, por exemplo, um romance? Parece-me evidente que é porque ele tem idéias em cinema que fazem eco àquilo que o romance apresenta como idéias em romance. E com isso se dão grandes encontros.

Não cogito do problema do cineasta que adapta um romance notoriamente medíocre. Ele pode precisar do romance medíocre, e isso não impede que o filme seja genial; seria interessante abordar essa questão. Mas proponho uma questão diferente: o que acontece quando o romance é um grande romance e revela-se essa afinidade pela qual alguém em cinema tem uma idéia que corresponde àquilo que era uma idéia em romance? Um dos casos mais belos é o de Akira Kurosawa [diretor japonês, 1910-1998]. Por que ele tem essa familiaridade com Shakespeare e Dostoiévski? Por que é preciso um japonês para entrar em familiaridade com esses autores?

Eu sugiro uma resposta que creio tocar um pouco à filosofia. Nos personagens de Dostoiévski, produz-se muitas vezes algo bastante curioso, que pode dizer respeito a um pequeno detalhe. Geralmente, eles são muito agitados. Um personagem sai de casa, desce até a rua e diz: “Tânia, a mulher que amo, me pede ajuda. Vou correndo, ela morrerá se eu não for”. Ele desce a escada e encontra um amigo, ou vê um cão atropelado, e esquece, esquece completamente que Tânia o espera, à beira da morte. Ele se põe a falar, cruza com outro camarada, vai até sua casa tomar chá e, de súbito, diz novamente: “Tânia me espera, é preciso que eu vá”.

O que significa tudo isso? Em Dostoiévski, os personagens são perpetuamente vítimas da urgência e, ao mesmo tempo em que eles são vítimas dessas urgências, que são questões de vida ou morte, eles sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual. E é isso que os paralisa. Tudo se passa como se, na maior urgência – “É um incêndio, é preciso que eu vá” –, eles se dissessem: “Não, existe algo ainda mais urgente. Não moverei um dedo até saber do que se trata”. É O idiota [romance de Dostoiévski filmado por Kurosawa]. É a fórmula de O idiota: “Veja, há um problema mais profundo. Qual problema, não saberia dizer ao certo. Mas me deixe. Tudo pode arder... É preciso encontrar esse problema mais urgente”.

Isso Kurosawa não aprendeu de Dostoiévski. Todos os personagens de Kurosawa são assim. Eis um belo encontro. Se Kurosawa pode adaptar Dostoiévski, é pelo menos porque pode dizer: “Temos um assunto em comum, um problema em comum”. Os personagens de Kurosawa metem-se em situações impossíveis, mas atenção: há um problema mais urgente. E é preciso que eles saibam qual é esse problema.

“Viver” é talvez o filme de Kurosawa que vá mais longe nesse sentido. Mas todos os seus filmes vão nesse sentido. Os sete samurais, por exemplo: todo o espaço de Kurosawa depende dele, é necessariamente um espaço oval, castigado pela chuva. Em Os sete samurais, os personagens são pegos numa situação de urgência: eles aceitaram defender o vilarejo e do começo ao final do filme eles são afligidos por uma questão mais profunda, que será proferida no final, pelos chefes dos samurais, quando eles partem: “O que é um samurai? O que é um samurai, não em sentido genérico, mas naquela época?”. Alguém que não serve mais para nada.

Os senhores não precisam mais deles, e os camponeses logo saberão defender-se sozinhos. Durante todo o filme, em que pese a urgência da situação, os samurais são atormentados por essa questão, digna de O idiota: nós, samurais, o que somos nós?

Uma idéia em cinema é desse tipo tão logo se ache empenhada num processo cinematográfico. Então você poderá dizer: “tive uma idéia”, mesmo se você a toma emprestada de Dostoiévski.

Uma idéia é algo bem simples. Não é um conceito, não é filosofia. Mesmo que de toda idéia se possa tirar, talvez, um conceito. Penso em Vincente Minnelli [diretor norte-americano, 1902-1986], que tem uma idéia extraordinária sobre o sonho. Ela é bem simples, podemos verbalizá-la, e está empenhada num processo cinematográfico que é a obra de Minnelli.

A grande idéia de Minnelli sobre o sonho é que ele diz respeito sobretudo àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham diz respeito àqueles que não sonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque sempre que há o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre um sonho devorador, que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é algo perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata da jovem mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma, mas por seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis.

Uma idéia cinematográfica é, por exemplo, a famosa dissociação entre o ver e o falar no cinema relativamente recente, quer seja – tomo os casos mais conhecidos Hans Juergen Syberberg [diretor alemão], os Straub [os diretores franceses Jean-Marie Straub e sua mulher Danièle Huillet], Marguerite Duras [escritora e diretora francesa, 1914-1997]. O que há de comum e por que é uma idéia propriamente cinematográfica fazer uma disjunção entre o visual e o sonoro? Por que isso não pode ser feito no teatro? Poder, pode, mas então, salvo se o teatro dispuser de meios, se dirá que ele a tomou de empréstimo ao cinema. O que não é necessariamente ruim, mas assegurar a disjunção entre ver e falar, entre o visual e o sonoro, é uma idéia tão cinematográfica que isso responderia à questão de saber em que consiste, por exemplo, uma idéia em cinema.

Uma voz fala de alguma coisa. Fala-se de alguma coisa. Ao mesmo tempo, nos fazem ver outra coisa. E enfim, aquilo de que nos falam está sob aquilo que nos fazem ver. Esse terceiro ponto é importantíssimo. Logo se vê que o teatro não teria acesso a tal expediente. O teatro poderia adotar as duas primeiras proposições: nos falam de alguma coisa e nos fazem ver outra. Mas que aquilo de que nos falam põe-se ao mesmo tempo sob aquilo que nos fazem ver – e isso é imprescindível, se não as duas primeiras operações não teriam nenhum sentido ou interesse – podemos dizê-lo de outro modo: a palavra se ergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que vemos afunda-se cada vez mais. Ou ainda: ao mesmo tempo que essa palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falava afunda-se na terra.

O que é isso senão aquilo que somente o cinema pode fazer?

Não digo que ele o deva fazer, mas que o cinema o fez duas ou três vezes, que foram grandes cineastas que tiveram essa idéia. Eis uma idéia cinematográfica. Ela é prodigiosa porque assegura ao âmbito do cinema uma verdadeira transformação dos elementos, um ciclo que, de um golpe, capacita o cinema a fazer eco a uma física qualitativa dos elementos. Isso produz uma espécie de transformação, uma grande circulação de elementos no cinema a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo o que eu digo, a história não é suprimida.

A história está sempre presente, mas o que nos espanta é o fato de a história ser tão interessante pela própria razão de ter tudo isso atrás dela e com ela. Nesse ciclo que acabo de definir tão rapidamente – a voz se ergue ao mesmo tempo que aquilo de que nos fala, voz afunda-se na terra – vocês reconheceram a maioria dos filmes dos Straub, o grande ciclo dos elementos dos Straub. O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me dirão: mas o que sabemos daquilo que ela tem debaixo? Ora, justamente aquilo de que nos fala a voz. Como se a terra se arqueasse em razão daquilo que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em seu lugar. E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido.

Costumo dizer, em todo caso, que ter uma idéia não é da natureza da comunicação. É nesse ponto que gostaria de chegar. Tudo de que se fala é irredutível a toda comunicação. Mas não se aflijam. O que isso quer dizer? Num primeiro sentido, a comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação.
Ora, o que é uma informação?

Não é nada complicado, todos o sabem: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem.

As declarações da polícia são chamadas, a justo título, comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema do controle. Isso é evidente, e nos toca de perto hoje em dia.É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisara dois tipo de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares. A passagem típica de uma sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar coincidiu, segundo ele, com Napoleão. A sociedade disciplinar definia-se – as análises de Foucault, com todo mérito, por causa disso tornaram-se famosas – pela constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso.

Essa análise engendrou ambiguidades em certos leitores de Foucault, pois se pensou que essa era sua última palavra. Evidentemente que não. Foucault jamais pensou, e ele o disse com bastante clareza, que as sociedades disciplinares fossem eternas. Antes, ele pensava que entraríamos num tipo de sociedade nova. É claro que existe todo tipo de resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio, mas já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro tipo, que deveria chamar-se, segundo o termo proposto por William Burroughs – e Foucault tinha por ele uma viva admiração –, de sociedades de controle.

Entramos então em sociedades de controle que diferem em muito das sociedades de disciplina. Aqueles que velam por nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de enclausuramento. Hoje todos eles, as prisões, as escolas, os hospitais, são temas de discussão permanente. Não seria melhor estender o tratamento aos domicílios? Sim, esse é sem dúvida o futuro. As oficinas, as fábricas não comportam mais empregados. Não seria melhor regimes de empreitada e de trabalho a domicílio? Não existem outros meios de punir os infratores senão a prisão? As sociedades de controle não adotarão mais os meios de enclausuramento. Nem mesmo a escola.

Vale a pena investigar os temas que nascem, que se desenvolverão em 40 ou 50 anos e que nos explicam que o espantoso seria conjugar escola e profissão. Seria interessante saber qual será a identidade da escola e da profissão ao longo da formação permanente, que é o nosso futuro e que não implicará necessariamente o reagrupamento de alunos num local de clausura. Um controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e “livremente”, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro.Suponhamos que a informação seja isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade.

O que a obra de arte pode ter a ver com isso?

Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contra-informação. Em países sob ditadura cerrada, em condições particularmente duras e cruéis, existe a contra-informação. No tempo de Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha e que foram os primeiros a nos contar sobre os campos de extermínio faziam a contra-informação. O que é preciso constatar é que a contra-informação nunca foi suficiente para fazer o que quer que fosse. Nenhuma contra-informação foi capaz de perturbar Hitler. Salvo num caso. Que caso? Isso é de vital importância. A única resposta seria que a contra-informação só se torna eficaz quando ela é – e ela o é por natureza – ou se torna um ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. A contra-informação só é efetiva quando se torna um ato de resistência.

Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação?

Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência.

Qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo nem talvez a cultura necessários para relacionar-se minimamente com a arte?

Não sei. André Malraux [escritor e diretor francês, 1901-1976] desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. Voltemos ao começo: o que fazemos quando fazemos filosofia? Inventamos conceitos. Eu considero esta a base de um belo conceito filosófico. Reflitamos... O que resiste à morte? Basta contemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de Cristo para descobrir que a resposta de Malraux é uma boa resposta. Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo.

O que é ter uma idéia em cinema?

Tomem o caso, por exemplo, dos Straub quando operam essa disjunção entre voz sonora e imagem visual, que eles tomam da seguinte maneira: a voz se ergue, se ergue mais e mais, e aquilo de que ela nos fala baixa sob a terra nua, deserta, que a imagem visual estava nos mostrando, imagem visual que não tinha nenhuma relação direta com a imagem sonora. Ora, qual é esse ato de fala que se ergue no ar enquanto seu objeto afunda na terra? Resistência. Ato de resistência. E em toda a obra dos Straub, o ato de fala é um ato de resistência. De Moisés e Aarão ao último Kafka [América, romance filmado por Straub], passando por – não cito pela ordem – Não reconciliados ou Bach [Crônica de Anna Magdalena Bach]. O ato de fala de Bach é sua música, que é um ato de resistência, luta ativa contra a repartição do profano e do sagrado.Esse ato de resistência na música culmina num grito. Assim como há um grito no Woyzeck [peça do alemão Georg Büchner de 1836], há um grito em Bach: “Fora! Fora! Ide embora, não vos quero ver!”. Quando os Straub o põem em relevo, esse grito, o de Bach ou o da velha esquizofrênica de “Não Reconciliados”, tudo isso há de testemunhar um duplo aspecto. O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens.

Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte?

A relação mais estreita possível e, para mim, a mais misteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: “Pois bem, falta o povo”. O povo falta e ao mesmo tempo não falta. “Falta o povo” quer dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que ainda não existe nunca será clara. Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.

Especial para a “Trafic”, tradução de José Marcos Macedo, publicado na Folha de S. Paulo de 27/06/1999.
Fonte: http://intermidias.blogspot.com/2007/07/o-ato-de-criao-por-gilles-deleuze.html

segunda-feira, 22 de março de 2010

“Esperando Godeau: Beckett e a inversão do classicismo”

Artigo escrito por Tania Brandão e publicado na edição número 1, de 1993, da Revista O PERCEVEJO. Em seu artigo, Tania faz uma série de colocações e estabelece paralelos da obra de Beckett com o século XVII, justamente aquele no qual proliferaram-se noções de métodos, regras e normatizações sem fim. Forte contraponto ao monólogo de Lucky.

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Clique sobre as imagens para vê-las em tamanho maior.

domingo, 21 de março de 2010

Lendo....

Leitura da adaptação do texto.
De 19h20 às 20h05 (duração de 45 minutos).

  • me chama atenção o processo de substituição, ou seja, o processo de metaforização do texto com intuito de agregar mais sentidos às palavras dispostas no texto. diz respeito a criar símbolos, signos, enfim, multiplicar em imagens o que o texto nos fornece em palavras;
  • pensar numa divisão do texto em unidades, porém, principalmente uma divisão pela qual tenhamos clareza de quando são personagens falando e de quando serão as atrizes. descobrir quando o texto é dramaturgia e quando diz respeito à encenação, à feitura da encenação;
  • coro;
  • o texto propõe ele mesmo as proporções (a história dos ladrões – 1:1 – a história do evangelho – 3:1 – aproveitar tais proporções como jogo entre as atrizes);
  • estudar o texto e tirar dele os jogos que o sustentam: contradizer-se; conversação; jogar de representar; etc;
  • leitura focada na metalinguagem (falam das botas – figurino; falam da árvore – cenário);
  • a relação com a platéia;
  • princípio de desplugamento da cena (quando as atrizes saem do jogo interpretacional? será que é quando a cena parece destinada a não funcionar?);
  • proporção 3:1 – 3 personagens – 1 atriz (comentadora);
  • dissociar fala/fisicalidade;
  • quais relações entre as personagens podem se estender à relação entre as atrizes?;
  • várias atrizes num mesmo papel?

“O peso ou a leveza?”

a sustentação da espera.
o peso da espera.

“Mas, na verdade, será atroz o peso e bela a leveza?

O mais pesado fardo nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos emaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira.

Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.

Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”

KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser.

 

o peso que Lucky carrega.
o peso que se deseja carregar.
a pós-modernidade recalca nossa espera?
e isso é ruim?
e isso é bom?
profanação. aproximar-se da terra.

intuir...

quinta-feira, 18 de março de 2010

As mulheres de Gabriel Villela

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ESPERANDO GODOT // SAMUEL BECKETT

Tradução// Fábio de Souza Andrade
Direção// Gabriel Villela
Elenco// Bete Coelho (Estragon), Magali Biff (Vladimir), Lavínia Pannunzio (Pozzo) e Vera Zimmermann (Lucky).
Cenografia e Figurinos// Gabriel Villela
Iluminação// Domingos Quintiliano

"Trabalhei com a subtração para chegar a um picadeiro roto, síntese de como estamos tratando a natureza no começo do século 21. Não há mesmo esperança, a não ser no fato da gente poder conversar ludicamente sobre estes temas, com os instrumentos que temos, no nosso caso o teatro." Gabriel Villela

Vídeos:
http://vimeocom/67110 ( 5 min )
htttp://vimeo.com/1350904 ( chegada do menino )
http://www.youtube.com/watch?v=qcw6iOfkztg&feature=related (Estragon e Vladimir)
http://www.youtube.com/watch?v=TF7jufp6k1o&feature=related (o cão entrou na cozinha...)
http://www.youtube.com/watch?v=ISWsStGvlas&feature=related (Menino e Lucky)
http://www.youtube.com/watch?v=On_RaI6w878&feature=related (Pozzo)
http://www.youtube.com/watch?v=tpaXz3rCJzk&feature=related (Ensaio)

 

sobre naufrágios e angústias...


“Há muitas abordagens sobre a relação entre o palco e o público. Para Artaud, o ator é a vítima condenada à fogueira que acena desesperadamente através das chamas. Para Grotowski, o ator é um mártir com quem o espectador não pode presumir identificar-se; ele pode apenas testemunhar com terror uma coragem heróica e o sacrifício que lhe é oferecido de presente. Samuel Beckett uma vez confidenciou-me que, para ele, uma peça era como um navio que afundava não muito longe da costa, enquanto o público, incapaz de ajudar, observa dos penhascos os passageiros a se afogarem gesticulando”.

BROOK, Peter. Fios do Tempo.

“É o pensamento freudiano sobre a teoria da angústia que nos vai permitir desdobrar esta afirmação: o indizível é a angústia. Há algo fora do plano do dizível e, portanto, da palavra, que é significativo e que se expressa no próprio limite da palavra. Ou seja: a indizível angústia é efeito que indica a verdade do desejo que não pode ser dita no plano da consciência, justo porque mostra o estatuto de parcialidade da verdade, deixando entre-ver e entre-dizer o espaço de ignorância e o desconhecimento, intervalo do que não pode ser dito, e que denuncia a falta no saber”.

“Sustentamos que a angústia é sinal da dor da ausência de objeto, ou, ainda, sinal da dor da incompletude. A angústia adquire, assim, o estatuto de mediadora entre a atividade simbólica e o real da Coisa, oferecendo-se como efeito de verdade parcial do desejo. Ou seja, no lugar de um nada absoluto surge a angústia, como sinal do vazio, da ausência de objeto, que mobilzia uma busca de significação”.

FRANÇA, Maria Inês. Psicanálise, Estética e Ética do Desejo.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Godot a Zé Celso

Esperando Godot de Samuel Beckett // Direção: José Celso Martinez Correa
Com: Selton Mello (Vladimir), Otávio Müller (Estragon), Xando Graça (Pozzo), Fernando Alves Pinto (Lucky)...


Diário de bordo de Selton Mello da Montagem de Esperando Godot no CCBB, Rio de Janeiro, 2001, dirigida por Zé Celso
http://www.youtube.com/watch?v=BJgJYTTUWP4&feature=related (parte 1)
http://www.youtube.com/watch?v=txVMvH0m3Ug&feature=related (parte 2)

terça-feira, 16 de março de 2010

Adaptando-se...

Terminei o processo de adaptação em poucos dias. O texto é o mesmo mas é outro. Sinto que as principais mudanças dizem respeito à agilidade pela qual as personagens parecem se mover. Movem-se com pressa, mas ainda são seres em perdição. Dizem isso, fazem aquilo, mas voltam a esperar Godot que, de súbito, se esvái em novo jogo.

O que se perde, então, sobretudo, são as excessivas indagações. Não há tantos “o quê?” como resposta a toda e qualquer fala. O entendimento ocorre, ele é direto e rápido. A questão é: e o que se faz agora que entendemos? Continua-se perdido. Assim como quando se encontra contente.

Prova dessa aceleração, desse tempo vertiginoso, é o corte feito no término do texto, quando o MENINO aparece. Nessa chatice lenta de perguntar e responder, o menino acaba interrompendo VLADIMIR e dando seu texto. Alguns trechos nos quais fica evidente isso:

MENINO – Senhor Albert?
VLADIMIR – Está falando com ele.
ESTRAGON – O que você quer?
MENINO – É o senhor Godot...
[...]
ESTRAGON – Que mentirada! Fale a verdade!
MENINO – Mas é verdade, senhor.
VLADIMIR – Quer deixar o menino em paz. Qual é o seu problema? O que há com você?
ESTRAGON – Sou infeliz.
VLADIMIR – Não brinque! Faz tempo?
ESTRAGON – Tinha esquecido.
MENINO – O senhor Godot...
VLADIMIR – Já vi você antes, não é?
[...]
VLADIMIR – É a primeira vez que vem?
MENINO – O senhor Godot mandou dizer que não virá hoje mas virá amanhã com certeza.
VLADIMIR – Só isso?
MENINO – Só, senhor.
VLADIMIR – Você trabalha para o senhor Godot?
MENINO – Cuido das cabras, senhor.
[...]
VLADIMIR – Ele usa barba, o senhor Godot?
MENINO – Acho que é branca, senhor.
VLADIMIR – Misericórdia.
MENINO – O que eu digo ao senhor Godot, senhor?

É nítida uma reverência a questões do tempo. Mas nesta adaptação, optei por não dar tanta importância ao “ontem” nem ao “amanhã”. Perde-se um pouco desse foco porque as coisas se superam com estranha agilidade e nos puxam para o agora. Não dá tempo para resmungar demais. Se foi ontem ou amanhã não importa. Importa ser naquele momento. Importa representar neste agora. É como diz VLADIMIR:

VLADIMIR – Não percamos tempo com palavras vazias. Façamos alguma coisa, enquanto há chance! Não é todo dia que precisam de nós. Ainda que não seja exatamente de nós. Outros dariam conta do recado, tão bem quanto, senão melhor. O apelo que ouvimos se dirige antes a toda a humanidade. Mas neste lugar, neste momento, a humanidade somos nós, queiramos ou não. Aproveitemos enquanto é tempo. Representar dignamente, uma única vez que seja, a espécie a que estamos desgraçadamente atados pelo destino cruel. O que me diz? Claro que, avaliando os prós e os contras, de cabeça fria, não chegamos a desmerecer a espécie. Veja o tigre, que se precipita em socorro de seus congêneres, sem a menor hesitação. Ou foge, ou salva sua pele, embrenhando-se no meio da mata. Mas não é esse o xis da questão. O que estamos fazendo aqui, essa é a questão. Foi-nos dada uma oportunidade de descobrir. Sim, dentro desta imensa confusão, apenas uma coisa está clara: estamos esperando que Godot venha.

Ele está falando de representar a si mesmo, o personagem. A atriz com esse texto na boca dizendo ter que representar dignamente seu personagem. A referência ao espectador, essa linda noção de humanidade. O xis da questão é a oportunidade. Foi-nos dada uma oportunidade de descobrir. Isso é lindo. É estimulante. É confuso.

A adaptação se fechou em 29 páginas. Creio que seja um tamanho adequado para uma encenação de uma hora. Para por aqui com cortes e modificãções. Esse processo voltará em breve, quando as atrizes colocarem as mãos no texto e o texto na boca.

Em breve...

“O intrateatro e o anti-ilusionismo”


Excelente artigo de Cláudia Vasconcellos, publicado na edição revista CULT, número 142, de janeiro de 2010. Nele, Cláudia apresenta a noção de INTRATEATRO ao invés do uso recorrente do termo METATEATRO.

Clique sobre as páginas escaneadas para que abram em nova janela, no tamanho original.

O intrateatro e o anti-ilusionismo - 01O intrateatro e o anti-ilusionismo - 02artigo_intrateatro_03

segunda-feira, 15 de março de 2010

Adaptando-se..


Segue a primeira visualização do início deste ATO ÚNICO de ESPERANDO GODOT. As cores servem para distinguir os atos. Em vermelho, trechos do segundo ato. Em verde, do primeiro.

As rubricas, onde estão? Morreram. Ficaram para a titia. Dormem quentes no inconsciente. O texto falado, afinal, nos dá quase todas elas. Certas ações são óbvias e saltam da palavra. Levante que lhe dou um abraço. E o outro diz: Não me toque! Fica claro o que acontece, não? Espaço para criar, para dotar o óbvio das devidas qualidades.

ato único - adaptação

Sinto que com esta adaptação consigo me aproximar do que gostaria de possuir com este texto. Uma certa qualidade estanque. Não tem a ver com inevitabilidade, eu diria ter mais a ver com praticidade, objetividade, é rápido, sem muitas firulas. Os jogos entre os dois continuam a existir, porém, são tão mais rápidos, não há muito resmungar.

A junção dos dois atos também provoca, inevitavelmente, alguns nós na compreensão. Será mesmo que essa fala cabe bem depois desta outra? Vladimir e Estragon parecem ambos esquecidos, com amnésia, tentando recompor juntos o seu passado hoje por nós mexido e maculado. Quem sabe assim não venham os dois a se divertir mais com toda essa tragédia.

Ler o texto como fossem atrizes numa sala de ensaio. Saindo e voltando aos personagens. Defendendo-os e tornando-os mentirosos e pequenos. Essa movimento é essencial para se descobrir seu fundo. Sua parcela genuína. Adoro. Estou me divertindo.

Adaptando-se.


Sim. O que eu fiz neste início de madrugada foi costurar os dois atos. Foi divertido. Fiz escolhas muito diretas, nem me dei o direito de pensá-las. Fui intuindo o que me pareceria mais interessante.

Assim, depois de fumar no primeiro ato, o Pozzo virá o insuportável mala do segundo ato. E a sua cegueira é tão de repente quanto a mudez de Lucky, que surge imediatamente após o seu monólogo. Não há mais tantas referências a ontem, porque o ato é um só. Não acrescentei nem mesmo uma palavra. E mantive as falas nos personagens que as detinham originalmente. Está divertido! Está, inclusive, me perdoem, muito mais legal do que a obra original.

primeiro ato - adaptaçãosegundo ato - adaptação

As imagens acima constam para revelar a costura. Este ATO ÚNICO de ESPERANDO GODOT começa pelo segundo, volta ao primeiro, ao segundo, ao primeiro e assim vai se torcendo até o fim.

Este exercício só comprovou o quanto os atos são semelhantes.

A maior surpresa: em um dos atos VLADIMIR e ESTRAGON falam de amarrar as botas – e no outro ato perdem horas pensando se estão amarrados a GODOT…

domingo, 14 de março de 2010

Cacilda Becker



Uma Cacilda Becker maltrapilha, ou Estragon, personagem de Samuel Beckett, olha para seus pés machucados e geme, e a dor que quer transmitir parece ser sentida por todo o público. Walmor Chagas, ou Wladimir, também um mendigo, aparece, e se une a ela para juntos fazerem o que a platéia do teatro sabe ser absurdo, mas que não deixa de comovê-la, todas as noites: Esperar Godot. No fim do primeiro ato do espetáculo, no dia 6 de maio de 1969, Vladimir pergunta: " Então, vamos?" Estragon responde: "Vamos". E a luz se apaga. Cacilda sai de cena para o intervalo, sente-se mal, e não volta mais aos palcos.







A flama interior incendeia até a inesperada tragédia em 1969, quando encena Esperando Godot, de Samuel Beckett. No intervalo, um derrame cerebral. Não volta para o segundo ato, que começaria com as palavras de seu personagem Estragon: "Aconteça o que acontecer, o dia pra mim está acabado". Não havia chegado as 50 anos e tinha marcado para sempre o palco brasileiro.



sábado, 13 de março de 2010

Falo……


A partir dos comentários recebidos por professores sobre o meu projeto de ESPERANDO GODOT, especulo mais possibilidades. Abrindo…

“atenção ao que não é dito (silêncio)”;

isso me faz pensar sobre o que fizemos com o silêncio, porque eu não o vejo. não tanto assim. o silêncio vem porque de tanto falar nos sufocamos e precisamos pausar, para voltar novamente a dizer a tentar a especular. acho que o silêncio morreu. assim como a espera foi transtornada. o silêncio é outra coisa. ele é ruidoso. ele não é mera pausa, mera imobilidade dos gestos e falas. seria o silêncio a clareza que não vem? a grande sacada? falamos para o quê? o silêncio sim pode ser então alguma chegada. o aportar de um Godot qualquer. alguma forma – clara – de receber a chegada. que se dissipa e traz consigo outras fomes, não saciadas…

tentativa de decifrar a duração do instante, dos textos/ritmos”;

acho que estou falando de metrônomo e não de cronômetro. o tempo neste GODOT é marcado pelo ANDAMENTO e não pela DURAÇÃO. são pontos de vista diferentes. se misturam, mas um viewpoint diz respeito à velocidade, ao ritmo – o andamento – enquanto o outro, diz respeito ao tamanho, à quantidade de tempo gasta pelo gesto movimento ação a ser executado. em GODOT estamos marcando pelo metrônomo o tempo PRESTÍSSIMO desses Godot que hão de chegar.

O metrônomo é um relógio que mede o tempo (andamento) musical. Produzindo pulsos de duração regular, ele pode ser utilizado para fins de estudo ou interpretação musical. (Há mais informações no Wikipedia… Clique aqui!)

aspectos metafísicos ou filosóficos ou apocalípticos da modernidade (lógica do absurdo humano)”;

acho que sinceramente isso se perdeu, se gastou. primeiramente diria que este absurdo já não me é mais tão absurdo. não me importo. não me toca. nem comove. não me move. NÃO ME MOVE. perco-me na objetividade das coisas mais promíscuas, nas vontades mais bobas, nas coisas mais simples. no que tange à esquina. no que tange à profissão, ao amor, ao encontro. isso me move. isso me instiga. isso é objetivo. ISSO PODE SER OBJETIVADO. o metafísico, whatever. disse melman, o céu está vazio. parece chroma-key, na minha opinião.

“ação da dupla cômica. ação cômica como perseguição do agora. a comédia é física. esperando godot é físico, é ação ainda que a espera seja a falta de ação. AÇÃO NO ESTADO DE ESPERA”;

a comédia sendo inevitável visto que é feita na busca, na tentativa e, inevitavelmente, no erro/acerto. física a tentativa. lembrou-me BERGSON e seu O RISO, no qual ele fala da FALTA DE FLEXIBILIDADE (rimos por causa disso. rimos porque a atriz não consegue, porque é inflexível, porque seu corpo não dobra quando é preciso dobrar)… no final das contas, Beckett propõe um rol imenso de ações que situam o nome da peça. NO GERÚNDIO, ação em curso, ação em simultaneidade a outra, ESPERANDO GODOT é espaço prenhe para ações.

o jogo das atrizes é a procura da ação plena no momento único do presente, ausência de passado e futuro”;

o jogo da encenação é a busca da ação plena no momento único que é o presente (da encenação, da representação teatral, do encontro público-obra). tentativa exposta. também real, também desenhada. podemos confundir o espectador e brincar de ser real a coisa já toda ensaiada? o erro desenhado como inédito? o tombo artificial que se traduz em surpresa? que limite? quais limites? eu queria uma atriz atuando muito mal do início ao fim. eu queria. ainda quero.

"”DESESPERANDO GODOT. procurar as cenas possíveis para GODOT. tomando, abandonando, retomando. contrução DESconstruída dos personagens. encontrar e abandonar uma possível cena para ESPERANDO GODOT”;

que instigante tudo isso. vejam:

des-
O prefixo des- indica separação, transformação, intensidade, ação contrária, negação, privação. Segundo o Aurélio: “Assume, às vezes, caráter reforçativo: desafastar, desaliviar, desapagar, desbarrancado, desborcar, desencabritar, desinfeliz, desinquietar, desinquieto, desinsofrido, desnudez, despelar; e, em um caso (pelo menos), reiterativo: deslavrar”.

Segundo Martins (1997, p. 121), “é com certeza o prefixo mais produtivo, mais popular, e desde as cantigas de escárnio já revelava a sua vitalidade”. Na obra poética drummondiana esse prefixo aparece inúmeras vezes em formações dicionarizadas como: desamado, desamar, desamor, destramar, desaprender, desenfado, desesperança, desimportante, entre outros.

Mais sobre o prefixo des- na obra de Drummond, clique aqui.

será esse o nome da peça? enfim… a idéia de DES é muito boa mesmo. e realmente produtiva. é engraçado porque GODOT chegou até mim com um rótulo terrível – A FÁBULA DA DESESPERANÇA, num artigo publicado na revista BRAVO! numa edição de 2006, a partir da estreia da montagem de Gabriel Villela.

procurar as cenas. busca. des- como separação do texto. como transformação dos significados nele impregnados. como intensidade – repetição – como ação contrária (não mais colocar sapatos), como negação (não mais uma série de elementos dramatúrgicos). tudo isso para negar e REFORÇAR a obra. encontrar nela, pela negação, o que dela em nós ainda se afirma.

eu suma, é um projeto completamente lançado no movimento da busca, naquilo que Blanchot chama de espaço de erro, um errar-vagar, próprio a todo processo de criação”;

é isso. caramba, é isso. movimento da busca. movimento real. movimento estilizado. movimento exaustivamente praticado e desenhado. seleção. não natural. consciente. não tenho o que acrescentar.

espécie de gatilho que desencadeia pensamento em busca de solução para o desassossego gerado pela simples idéia de fazer Godot chegar, um cheque-mate qualquer pode, inclusive, não vir. não é isso que importa, mas o caminho percorrido em todas as suas bifurcações”;

o tal GODOT enquanto presença, enquanto homem presenticado não vai rolar. não é isso. acho que ficou claro. importa se mover. importa buscar. isso dota a vida de algum sentido. isso é real. é concreto. é OBJETO. bifurcar-se.

quinta-feira, 11 de março de 2010

“ETERNO RETORNO”

" Nada é mais engraçado do que a infelicidade." ( Beckett )

"Esperando Godot não conta uma história, mas explora uma situação estática."
( Martin Esslin. 1961)

" No início, as críticas definiram a peça como uma peça de vanguarda: era só assim que ela podia ser salva. Depois, fato surpreendente, a peça não se limitou a sua platéia de intelectuais e esnobes esclarecidos: ela continuou seu caminho, atravessando platéias sempre mais amplas, sempre mais afastadas desse hermetismo onde a crítica politicamente correta queria confiná-la. Godot atingiu o grande público parisiense, estrangeiro, a província. Hoje, Godot comove até as associações de teatro popular. [...] Sociologicamente, Godot não é mais uma peça de vanguarda. [...] Godot ficou adulto. [...] Godot se ampliou, porque Godot continha as propriedades específicas do seu tempo.
( Barthes, Roland. Escritos sobre o teatro. 1954. p.59.)

"... Nesse sentido, a peça constitui um eco da memória afetiva coletiva, uma expressão palpável das angústias essencias do homem, uma expressão da espera, da esperança contínua e desesperada de cada ser humano, esperando o seu Godot, além das contingências temporais. Como em O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati (2003), em que o protagonista espera invasores que nunca chegam, a essência de Godot é variável: a sua identidade depende da função que cada um lhe atribui, o que amplia consideravelmente a receptividade da peça. Na peça, Godot nunca chega, e a única alternativa, a única ocupação possível parece ser o suicídio; mas os personagens não têm a coragem necessária para se enforcar e acabam se agarando em pequenas diversões cotidianas para não cair no desespero, presas invariáveis de suas esperas decepcionadas e de uma existência desprovida de sentido, porque, no contexto pós-guerra de escrita da peça, toda referência metafísica havia desaparecido.
Os personagens funcionam por pares, compondo binômios incapazes de viverem juntos e incapazes de se separarem. A separação, constantemente pensada com uma solução possível, acaba por tornar-se demasiado tardia, e o fato de ficarem juntos constitui uma última opção para afrontar as angústias da vida. "Não me toque, não me faça perguntas, não fale comigo - fique comigo", diz Estragon a Vladimir, ilustrando o quanto a presença constitui um cataplasma, mas jamais solução".
( Tânia Alice Feix. A encenação de Esperando Godot no Estado do Ceará: da busca estética à consciência ética. 2005.)