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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Da estrutura que os abarca faz décadas...

 
Ipiabas, 25 de dezembro de 2009.

Ainda estou pensando neste jogo da cena que se converte no próprio jogo das personagens. É possível traçar aproximações, espelhamentos, alguma analogia? Sendo possível, o jogo da cena é o jogo dos personagens. O jogo entre os atores é o mesmo jogo entre as personagens. Por exemplo, em NÃO DOIS, (a partir do texto Pas-de-Deux de Eduardo Pavlovsky) os atores Dan Marins e Natássia Vello jogavam um jogo de repetição de uma mesma partitura (como atores), assim como seus personagens jogavam um jogo de repetição de movimentos que haviam feito faz tempo, mas que precisavam repetir para não esquecerem. Houve um encontro entre os dois jogos. Um jogo que servia tanto aos atores enquanto desafio, estética, forma, como um jogo que servia à dramaturgia, à dramaticidade.

Se eu resolvo partir da noção de espera (que considero estar fatigada), assim, o jogo proposto deve tentar evidenciar esta necessidade da encenação. O jogo deve relacionar espera e o cansaço em relação a esta, ou seja, o jogo deve revelar o quanto esta espera (proposta por Beckett) está fora de contexto hoje em dia. Para isso, devo pensar em qual jogo possibilitará o desenho desta leitura. Devo pensar os recursos, os meios pelos quais tornar esta opinião legível. Eis que me deparo com a idéia de metalinguagem, a partir do cansaço (não somente meu em relação à espera, mas, sobretudo, cansaço das personagens em relação aquela história – estrutura – que os abarca faz décadas).

Não quer dizer que conseguiremos. Quer dizer que haverá um esforço para desconsiderar este modelo de espera, esta leitura da espera, justamente para que consigamos nos afastar dela e voltar à mesma, não por desejo, mas por inevitabilidade. Para voltarmos ao mesmo com clareza, qualidade. A espera – real, a - histórica, atemporal – nos traga de volta, sempre, para a sua obviedade, para a sua originalidade.

A noção de metalinguagem. Serve-me em primeiro lugar porque pode expressar o cansaço não somente meu em relação à espera, mas também das personagens, já que elas estariam tão cansadas quanto eu estou. É compreensível?

Pela metalinguagem, nós poderíamos converter o jogo da espera para um jogo que se refere também ao ato de criação. A espera num processo criativo é algo muito angustiante. É uma etapa. Faz parte do processo. Lidamos também com ela, inevitavelmente, em se falando da construção de uma obra teatral. Por exemplo, falando bem romanticamente, esperamos o momento de “encontrar o personagem”, o momento em que o ator sente que realmente se encontrou a seu personagem. Esperamos a hora de colocar os figurinos, de jogar com o cenário, com a luz. Esperamos a luz. Esperamos a cena, o texto decorado, esperamos o público. O público entrando na sala de espetáculo é uma primeira espera que é saciada de forma brusca e violenta.

“Que bom que vocês chegaram, gente. A gente já não agüentava mais esperar”.

Referência Bibliográfica
Guénoun, D. (1977). O teatro é necessário? São Paulo: Perspectiva.
                                               

s u p e r f i c i a l i d a d e s profundas

 
Andrêas diz:
vai fazer completo?

didios diz:
nneca
de jeito nenhum
vou acabar com essa peça
acabar em todos os sentidos
incluindo
fazer merda
asuhsauhsausahuashsau

Andrêas diz:
hahahaha
vai fazer só com eles dois?

didios diz:
não
com quatro atrizes
e seis personagens
vlady, lucky, estra, pozzo, menino e godot, claro

Andrêas diz:
hahahahhaha
tah de sacanagem

didios diz:
nao
eh isso mesmo
e prepara-se para a merda q eu havia dito
mas

Andrêas diz:
essa eu vou ter q ver
hahahahha

didios diz:
GODOT deve chegar numa das primeiras cenas]

Andrêas diz:
hahahahha

[...]

didios diz:
a questão eh
como fazer com o texto do beckett se eu vou destrui-lo
???
isso nao eh previsto
mas eh obvio q vai acontecer

Andrêas diz:
mas o q q te interssa da peça?

didios diz:
me interessa falar de teatro
me interessa expor o meu odio e revolta em relação ao lugar-comum que muitos associam ao teatro
EU NÃO AGUENTO MAIS ESPERAR GODOT.
que porra é essa? eu nem sei o que ele é, quem é, se é, e mesmo assim tem um drama pesado que a humanidade carrega e se orgulha de carregar
acho chato!
não estamos mais nesse esquema da espera
quem espera (nem) sempre alcança.
mas quero que se alcance.
!
é piração
eu sei.
foi mal
mas to tentando pensar essa montagem agora
no final da primeira decada do sexulo XXI

Andrêas diz:
eu acho q tem ver com uma resposta tecnologica a espera

didios diz:
exato
eu estou botando fé
na IMAGEM
na SUPERFICIE
no ARTIFÍCIO
que é a mesma merda do que ficar trocando o sapato
o chapéu
e por aí vai
eu quero falar do que beckett fala
mas atualizar
a minha espera existe
ser humano eh nascer aprendendo a esperar
nascer aprendendo a esperar pela morte
mas esperamos de formas diferentes hoje

Andrêas diz:
talvez mais em quantidade

didios diz:
vc ama esse texto?

Andrêas diz:
sim
por como é comico e tragico
e ao mesmo tempo belo
cara
vc tah com teatro do absurdo?
o livro?

didios diz:
sim
começo a ler amanhã

[...]

Andrêas diz:
e o godot é praticamente uma peça moderada dele
ele foi radicalizando

didios diz:
sim
acho q é a peça naturalista do beckett
exagerando no conceito
mas
eh super plausível

[...]

didios diz:
mas queria ficar mais na minha, confesso
sei q é esquisito, parece até preguiça
mas sei lá
eu estou tendo uma leitura
acredito nela
ela esta amadurecendo
toda vez q eu olho para a historia, para A Historia
ela me cansa um pouco
pq eh uma historia de reprodução, de repetição

Andrêas diz:
eu entendo o q fala
mas é uma questaum de ponto de vista
essa frase é ridicula mas é isso ai

didios diz:
simmmm
ponto de vista
ushauahuashasuhasu
eh serio isso
obviamente
eu estou estudando beckett, lendo coisas sobre ele q fizeram história

Andrêas diz:
atinja as cenas pelo ponto de vista q te interessar
só toma cuidado pra naum falar domundo, da vida, do teatro, entende?

didios diz:
sim
sim
tenho q me dar foco, neh?
sem foco, td parece menos importante do q é

Andrêas diz:
é uma questaum de jogo tb

didios diz:
aliás
confesso
eh só uma questão de jogo

[...]

Andrêas diz:
to lendo aqui
espera ai um pouco
li o primeiro text

didios diz:
o do jogo?

Andrêas diz:
é
eu acho q só ali jah tem muita coisa pra investigar

didios diz:
eu tenho fugido
mas eu sei onde vai dar
eu preciso estudar meta
linguagem, meta, teatro, meta
godot pra mim reproduz o cansaço do teatro agora, agora
sabe?
tem falas do vladimir e do estragon, q parecem ser dadas pelos atores q estao interpretando eles

Andrêas diz:
as pessoas tem q assistir algo q só seria possivel pq é teatro, entende?
e se vc pegar tres ingredientes e ficar misturando de formas diferentes...jogando tetro livremente...todo o bla bla bla teorico aparece e toda NECESSIDADE tb

didios diz:
ehhhh
engraçado vc falar 3
pq acho q seja esse o numero
nao dois, mas três

Andrêas diz:
eu fiquei com esse numero depois q li o texto, naum sei pq

didios diz:
q bom

Andrêas diz:
ninguem quer saber o vc sabe, mas sim o q vc quer fazer e porque

didios diz:
cara, eu to numa fase q qualquer coisa me estimula a pensar/fazer teatro
sim
ia falar sobre isso
pq parece louco
mas ler jung
freud
qualquer coisa q nao teatro
me dá mta energia pra pensar teatro
q loucura isso

Andrêas diz:
o antunes trabalha assim
ele manda os atores lerem tudo, menos teatro
passa livros e livros

didios diz:
pois eh
esse blog é um acumulo de referencias
menos teatrais e artisticas
mais filosoficas e, diria, políticas
enfim
to tendo q me obrigar a ler um livro sobre teatro entre cada outro livro
pq se deixar
eu vou ler psicanalise, sociologia, filosofia.....

[...]

Andrêas diz:
o teatro é um instrumento
um meio e um fim
e um eterno não-fim

[...]

didios diz:
eu posso postar no blog alguns trechos de nossa conversa?

Andrêas diz:
pode sim
rs

Trechos de uma conversa via Messenger com o amigo Andrêas Gatto. Em 30 de dezembro de 2009.
  

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Em busca de um jogo...


Ipiabas, 24 de dezembro de 2009.

Estou lendo O teatro é necessário? de Denis Guénoun. Naturalmente, muitas coisas estão surgindo em minha cabeça. Segue algumas viagens que estou tendo a partir da leitura.

Uma primeira idéia que surgiu foi pensar sobre aquilo que o espectador espera da peça. Isso mesmo, pegar o verbo esperar e jogá-lo aos espectadores. O que será que esperam? Será uma espera que se saciará ou não? Como lidamos com esta espera? Em que ela afeta o jogo da cena? Eles esperam pelas cenas, por alguma revelação? Os espectadores esperam que revelemos uma nova forma para o mesmo já conhecido? Viagem, mas, imaginei uma cena com Vladimir e Estragon sentados próximos à árvore e caindo dela, uma carta, na qual lessem aquilo que se espera do espetáculo que eles estão prestes a executarem.

“Nós acharíamos ridículo que para atuar [...] a pessoa se apresentasse no palco sem preencher as condições básicas [...] Nós esperamos da tragédia abalos violentos [...] Espera-se que o ator seja sincero, [...] espera-se que ele seja hábil [...]”. (Guénoun, 1977).
Em seguida, voltei a pensar numa escolha primeira que fiz e que é um tanto arbitrária. Mas escolha na qual eu insisto, mesmo sem entender ainda o porquê. Eu quero trabalhar apenas com atrizes. Num primeiro momento, com quatro atrizes que possam interpretar Vladimir, Estragon, Pozzo e Lucky. Mas depois, lendo o livro acima, me veio a idéia de que na verdade são quatro atrizes se debatendo em seis personagens, pois além dos quatro já citados, ainda temos o Menino e, claro, Godot.

Ainda seguindo um pouco nesta busca pela utilização das atrizes, pensando sobre seu espaço e sua relação com as personagens, me perdi numa questão que muito me intriga. Guénoun escreve num dado momento, ao discorrer sobre O Paradoxo do Comediante, de Diderot:

“É quando se assinala a maior distância entre o ator e o personagem que o primeiro pode se identificar com o segundo. Só é possível se identificar com aquilo que está distante – distinto e longe de si mesmo. Caso contrário, não há identificação possível; a pessoa é a mesma, supondo-se que se pudesse imaginar isto. A identificação é este movimento: o de redução de uma distância que deve, portanto, ser, antes, criada. O ator não desliza até ela a não ser a partir da diferença representativa, da ampliação da fissura entre a ação e a imagem, entre a imitação e o imitado. Ele só pode (eventualmente) se identificar com seu papel no caso de este se ter tornado autônomo, fora ou acima dele, como espectro”. (Guénoun, 1977).
Foi quando eu comecei a pensar no jogo da cena como um jogo de espera. Jogo no qual as atrizes tivessem que se organizar e jogar as cenas, dentro de regras pré-estabelecidas, mas que fossem guiadas pelo desejo de estar em cena, pela necessidade, articulando nisso também o esforço da espera. Esforço da espera, no sentido de que deveriam prezar não unicamente pela sua presença em cena, mas também pela presença do outro. Como se todas as quatro atrizes soubessem como jogar com todos os personagens, mas não soubessem ainda com qual deveriam jogar. Nem com quem. Um jogo real onde a cada cena vista e feita as atrizes – de fora (sobrando) – reordenariam os papéis e entrariam em cena. As atrizes que estavam esperando fora de cena, atestariam pela sua espera, a necessidade real daquela mudança que se deu com sua entrada.

Vou tentar ser mais claro (não sei ainda o que é essa idéia, mas me parece prenhe de algo que me interessa muito): tenho duas atrizes em cena, brincando com os papéis de Vladimir e Estragon. Fora de cena, porém em jogo, visíveis, duas outras atrizes esperam não necessariamente para interpretarem Pozzo e Lucky, mas para outra coisa. Estariam fora de cena avaliando o interior, zelando por ele, tentando compreender o que nele acontece e o que ele devolve à platéia, ao espectador. A partir deste distanciamento, deste olhar mais atento e clínico, não menos apaixonado, as atrizes de fora poderiam entrar em cena e substituírem as outras, jogando com Vladimir e Estragon no lugar de cena que acharem ser necessário.

Da necessidade. Para jogarmos pela necessidade é preciso haver previamente um conceito mútuo que nos situe aquilo que consideramos ser necessário. Ou seja, o que é necessário neste espetáculo? Necessidade em relação ao espetáculo, à estética do mesmo, ao espectador, às atrizes? Enfim...

Estou pensando apenas nesse jogo onde a espera das atrizes resulta em renovação, em não espera, em mudança, em tentativa, erro, volta ao texto. Olha isso. Se o nosso mote é desesperar Godot, se o nosso mote é não mais aceitar esta espera. Logo, o jogo de quem está de fora, é conseguir insuflar para dentro da dramaturgia de Beckett alguma lufada de energia, alguma lufada de força que os possa tirar daquele caminho-precipício já anunciado e conhecido. Como se as atrizes entrassem toda vez que sentissem alguma possibilidade de mudança real daquela situação sem solução.

Mas acho que talvez o texto de Beckett, sua desesperança, sua história, trague as atrizes rumo ao fim de suas personagens. Seria um embate entre atrizes e personagens. Um embate metalingüístico, no sentido em que as atrizes usariam seus personagens também para justificarem a sua mudança de postura. Ou seja, elas usariam as falas e ações das personagens para atestarem a eles e a elas e ao público, sobre o cansaço de esperar Godot.

Estou falando de uma metodologia de ensaios e criação de cenas ou já da própria cena? Não sei. Interessa-me pensar nas duas possibilidades. Ainda creio que preciso desenvolver muito mais a questão do teatro fazendo teatro. Nos personagens cansados de serem personagens. Isso me leva às atrizes. São atrizes cansadas? Ou personagens? O personagem tem corpo ou seu corpo são palavras?

Seguir...

Referência Bibliográfica
Guénoun, D. (1977). O teatro é necessário? São Paulo: Perspectiva.
 

Pesquisando..

    
"Stage Design" de "Waiting for Godot",










"A Era do Prazer"


Novo destaque da psicanálise, Charles Melman afirma que os indivíduos nunca pensaram tão pouco como hoje e que as ideologias acabaram. Por Celina Côrtes

O psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) e o francês Jacques Lacan (1901-1980) provocaram uma revolução ao desvendar com mais profundidade o funcionamento da mente. Embora suas teorias continuem vigorando, o homem que eles analisaram tem diferenças fundamentais em relação ao cidadão do século XXI. Com o cuidado de não minimizar o conhecimento de seus antecessores, o psicanalista francês Charles Melman, 73 anos, está causando uma nova revolução na psicanálise com o livro O homem sem gravidade, gozar a qualquer preço (Ed. Companhia de Freud). Melman faz um retrato de corpo inteiro do novo homem, que põe o prazer à frente do saber e prioriza a estética em detrimento da ética. “O excesso se tornou norma”, diagnostica, com sua voz calma e pausada, à beira da piscina do Hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. Melman esteve na cidade participando de um seminário sobre os laços conjugais na modernidade. O evento, com o título Será que podemos dizer, com Lacan, que a mulher é sintoma do homem?, foi promovido pela associação psicanalítica Tempo Freudiano.

Apesar de ser um dos profissionais mais badalados do momento na psicanálise, seu tom nada tem de arrogante. Melman foi um dos principais colaboradores de Lacan, que o escolheu para dirigir a Escola Freudiana de Paris. Ele fundou a Associação Freudiana Internacional, que mais tarde passou a se chamar Associação Lacaniana Internacional. O psicanalista evita injetar julgamento nas conclusões alinhavadas em seu livro. São constatações sobre a vida moderna, na qual ele vê aspectos positivos, entre os quais a “formidável liberdade”, e negativos, como o processo de substituição das neuroses pela depressão. O que ele batiza como “nova economia psíquica” teria, entre outras coisas, transformado o sexo em uma mercadoria como outra qualquer. Até a morte perde sua sacralidade, segundo Melman. Para ele, a exposição sobre arte anatômica – que está correndo o mundo desde 1997 e exibindo cadáveres plastificados e suas entranhas – seria um forte indício dessa tendência. “A questão atual é exibir. Exibir as tripas, o interior das tripas, o interior do interior”, analisa.

Istoé - O que é a Nova Economia Psíquica?
Charles Melman - Hoje a saúde mental já não se origina mais da harmonia com o ideal de cada um, mas do objeto que possa trazer satisfação. Não há limites. Há uma nova forma de pensar, de julgar, de comer, de transar, de se casar ou não, de viver a família, a pátria e os ideais. Essa nova economia psíquica é organizada pela exibição de prazer e implica em novos deveres, dificuldades e sofrimentos. A partir do momento em que há no sujeito um tipo de desejo, ele se torna legítimo, e é legítimo esse indivíduo encontrar sua satisfação. A posição ética tradicional, metafísica, política, que permitia às pessoas orientar seu pensamento, está em falta. O excesso se tornou a norma.
 
Istoé - Quais são os aspectos positivos e negativos disso?
Charles Melman - Cada um pode satisfazer publicamente suas paixões contando com o reconhecimento social, incluindo as mudanças de sexo. Há uma formidável liberdade, mas ela é estéril para o pensamento. Nunca se pensou tão pouco. O trabalho do pensamento é comandado por aquilo que produz obstáculo. Mas nada mais representa obstáculo, não sabemos o que há para pensar. O sujeito não é mais dividido, não se interroga sobre sua própria existência. Como faltam referências, o indivíduo se vê exposto, frágil e deprimido, necessitando sempre da confirmação externa. Assim, o eu pode se ver murcho, em queda livre, gerando uma frequência de estados depressivos diversos.

Istoé - Como o sr. descreveria o indivíduo nessa economia psíquica?
Charles Melman - A imprensa e a mídia substituíram as fontes de sabedoria de outrora. Daí resulta um indivíduo manipulável e manipulado. Suas escolhas, opções e comportamento de consumidor é que organizam seu mundo. É uma forma de identificação que, me parece, não foi observada por Freud nem por Lacan.

Istoé - De que forma se dá o rompimento do modelo gerador de neuroses desvendado por Freud no qual a relação com o mundo é marcada pela ausência do objeto querido e que consequências tem esse rompimento?
Charles Melman - Com o desaparecimento do limite, não há mais o sujeito do inconsciente de Freud, que se expressava por seus sonhos, lapsos e atos falhos. Se houve uma descoberta feita por Freud é a de que nossa relação com o mundo não se dá por intermédio de um objeto, mas pela falta dele. No complexo de Édipo o objeto em falta é a própria mãe. A pessoa precisava passar por essa perda para estabelecer suas identificações sexuais. Hoje, para se ter acesso à satisfação não é mais preciso passar pela perda, que era uma fonte de neuroses. Do conjunto de pessoas que se consultam nos serviços hospitalares, 15% são casos de depressão. Há, portanto, a emergência de um novo sintoma, a depressão, no lugar das neuroses de defesa.

Istoé - O prazer sexual estaria se banalizando?
Charles Melman - O sexo realmente se banalizou. É encarado como uma necessidade, já que caiu por terra o limite que o tornava sagrado. Quando se fala em liberação sexual, não se fala mais no desejo. O homem contemporâneo trata o desejo sexual, de certa forma, como simples atividade corporal. A nova economia psíquica faz do sexo uma mercadoria entre outras.

Istoé - De que forma a exposição sobre arte anatômica, apresentada desde 1997 e ainda correndo o mundo, influenciou suas idéias?
Charles Melman - Com essa exposição a morte deixou de ser sagrada. Passou a ser mais um bem de consumo. Os cadáveres, protegidos da putrefação por modernas técnicas, viram corpos plastificados expostos à visão. Algumas vezes com o interior do cérebro, do sistema digestivo e até um feto dentro do útero à mostra. Milhares de pessoas estão fazendo filas nos museus para ver a exposição. Estamos ultrapassando os limites. Até então, uma das características da espécie humana era destinar seus mortos à sepultura, com o respeito que costuma cercar a morte. A questão atual é exibir. Exibir as tripas, o interior das tripas, o interior do interior.

Istoé - Então não há mais nada que choque as pessoas?
Charles Melman - Há sim, a pedofilia. Mas, de qualquer forma, os programas de televisão e a imprensa mostram os casos mais escabrosos em detalhes e todos se interessam por esse tipo de noticiário, como se fossem os fatos da atualidade. As jovens que foram violadas acabam sendo exibidas como mais um objeto.

Istoé - Por que a figura paterna foi esvaziada, assim como o lugar da autoridade de uma maneira em geral?
Charles Melman - O problema do pai, hoje, é que não há mais autoridade, ou a função de referência. Sua figura se tornou anacrônica. Nas famílias, o pai e a mãe passam a ter as mesmas atribuições, o que dificulta a identificação dos filhos com a figura masculina e com a feminina.

Istoé - Por que o sr. diz que a vida política está desértica?
Charles Melman - Os jovens sempre foram revoltados com a injustiça social. Hoje, no entanto, eles só têm uma vontade: participar da vida social. Eles não protestam contra as injustiças. Querem apenas encontrar um meio de gozar logo os prazeres da vida social. Por outro lado, muitos cidadãos podem constatar que falta potência ao poder político diante das forças econômicas, verdadeiras ‘mestres’ da situação. Então por que se engajar na vida política se ela é impotente para corrigir as desigualdades e dificuldades da vida social? Hoje, acabaram as ideologias, as palavras de ordem e até mesmo as utopias. Os indivíduos preferem eleger pessoas que souberam gerir bem seus negócios. Não há mais confiança nos políticos.

Istoé - Por que tanta desconfiança?
Charles Melman - Porque nessa sociedade permissiva todas as figuras de autoridade parecem abusivas, é como se não ocupassem mais o seu lugar. É a mesma coisa com o pai na família.

Istoé - Quais são as características desse homem, sem gravidade?
Charles Melman - Faltam ao homem de hoje qualidades que lhe seriam singulares. Temos mais a impressão de uma generalização dos traços que se tornaram comuns a todos os cidadãos. É como se eles tivessem mais ou menos as mesmas qualidades e defeitos.

Istoé - Isso pode ser um dos resultados da globalização?
Charles Melman - Sim. Fui há alguns dias ao Chile, no deserto de São Pedro de Atacama. Lá há um oásis com três a quatro mil pessoas, a maioria de jovens originados do povo inca, que habitava a região. Pelo que se interessam esses jovens de origem indígena, no fundo do deserto? Pelos mesmos objetos de consumo oferecidos em Xangai, no Rio de Janeiro e em Paris. O que vale sua cultura de origem em relação a esse culto de objetos? Nada.

Istoé - Como a estética está ocupando o lugar da ética?
Charles Melman - O número de jovens que querem fazer teatro é inacreditável, mesmo os que já têm diplomas profissionais importantes. Por quê? A única maneira hoje de ser aceito pelos outros é estar em cena, captar os olhares, agradar, ser sedutor, ou seja, a imagem de cada um é que se tornou decisiva para ser aceita e, eventualmente, para ganhar dinheiro. Esses progressos da estética são um ponto positivo da nossa cultura. Por que não? É agradável ver jovens esteticamente cuidados. Mas se torna um problema quando é o principal meio que eles têm para serem admitidos e reconhecidos.

Istoé - O sr. diz que a corrida à juventude perpétua gera um sentimento de desamparo, de falta de referências, ansiedade e cansaço. Pode explicar melhor?
Charles Melman - Nossa nova economia psíquica é muito jovem. As gerações precedentes estão desorientadas pelos novos problemas. Ser jovem é dar testemunho de que se participa dessa nova moral e inteligência. Mas, em geral, é bastante difícil se manter nessa posição. Há, portanto, ansiedade no indivíduo pelo medo de não ser mais reconhecido e apreciado. Antigamente as pessoas idosas eram respeitadas por sua sabedoria. Hoje, são rejeitadas pela velhice dos valores morais, que já não interessam.

Istoé - Quais as influências da publicidade sobre esse novo indivíduo?
Charles Melman - Os publicitários são muito inteligentes. Precisam transformar o objeto de necessidade em objeto de desejo. Sabem que podemos nos desinteressar do objeto de necessidade rapidamente, mas o desejo é permanente. Quer dizer, quando a publicidade quer vender um iogurte é preciso apresentá-lo como um produto estranho, enigmático. A publicidade tem um papel pedagógico, que vai no sentido da liberalização dos costumes. E as crianças são muito sensíveis às suas mensagens.

Istoé - O sr. diz que a mídia também tem um papel importante nesse contexto.
Charles Melman - Considerável. Como não temos mais grandes textos de referência, a mídia se tornou nosso meio para pensar. Ainda assim, a parte informativa dos jornais diminuiu muito em relação às simples notícias da atualidade. Só interessa ao leitor o que o toca, diretamente ou por ligação afetiva.

Istoé - A nova psique, segundo o sr. diz, está criando também um novo fenômeno linguístico. Estaria surgindo uma nova língua?
Charles Melman - Os jovens se comunicam por torpedos (mensagens eletrônicas via celular) com uma nova escrita, que tende ao desaparecimento das vogais. O privilégio é das consoantes, com uma ortografia completamente livre, fundada na idéia de que o receptor é incapaz de decifrar minha escrita. É uma escrita que inventa cada frase em particular. Acredito que teremos em breve romances escritos com essa nova linguagem. Os efeitos disso ainda não são previsíveis, mas trata-se de um processo divertido e interessante.


sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

"Poder sobre a vida, potências de vida"


Diogo dê uma olhada no texto do Peter Pál Pelbart, ele publicou o artigo em uma revista e hoje o mesmo artigo se encontra no livro "Vida Capital", de sua autoria e com o título "Poder sobre a vida, potências de vida".

A potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, afetação recíproca, produção de laço, capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. Uma economia imaterial que produz sobretudo informação, imagens, serviços, não pode basear-se na força física, no trabalho mecânico, na automatismo burro, na solidão compartimentada. São requisitados dos trabalhadores sua inteligência, sua imaginação, sua criatividade, sua conectividade, sua afetividade - toda uma dimensão subjetiva e extra-econômica antes relegada ao domínio exclusivamente pessoal e privado, no máximo artístico.

Como o diz Toni Negri, agora é a alma do trabalhador que é posta a trabalhar, não mais o corpo, que apenas lhe serve de suporte. Por isso, quando trabalhamos nossa alma se cansa como um corpo, pois não há liberdade suficiente para a alma, assim como não há salário suficiente para o corpo. Em todo caso, que a alma trabalhe significa, nos termos que mencionávamos há pouco, que é a vitalidade cognitiva e afetiva que é solicitada e posta a trabalhar. O que se requer de cada um é sua força de invenção e a força-invenção dos cérebros em rede se torna tendencialmente, na economia atual, a principal fonte do valor.

É como se as máquinas, os meios de produção tivessem migrado para dentro da cabeça dos trabalhadores e virtualmente passassem a pertencer-lhes. Agora sua inteligência, sua ciência, sua imaginação, isto é, sua própria vida passaram a ser fonte de valor. A associação e cooperação entre uma pluralidade de cérebros prescinde, no limite, da mediação do capitalista, tão decisiva num regime fordista.

Podemos retomar nosso leitmotiv: todos e qualquer um, e não apenas os trabalhadores inseridos numa relação assalariada, detêm a força-invenção, cada cérebro-corpo é fonte de valor, cada parte da rede pode tornar-se vetor de valorização e de autovalorização. Assim, o que vem à tona com cada vez maior clareza é a biopotência do coletivo, a riqueza biopolítica da multidão. É esse corpo vital coletivo reconfigurado pela economia imaterial das últimas décadas que, nos seus poderes de afetar e de ser afetado e de constituir para si uma comunialidade expansiva, desenha as possibilidades de uma democracia biopolítica.

Duas palavrinhas ainda. Uma a respeito do termo “biopolítica” e outra a respeito do termo “multidão”. Biopolítico foi o termo forjado por Foucault para designar uma das modalidades de exercício do poder sobre a vida, vigentes desde o século 18. Centrada prioritariamente nos mecanismos do ser vivo e nos processos biológicos, a biopolítica tem por objeto a população, isto é, uma massa global afetada por processos de conjunto.

Biopolítica designa pois essa entrada do corpo e da vida, bem como de seus mecanismos, no domínio dos cálculos explícitos do poder, fazendo do poder-saber um agente de transformação da vida humana. Um grupo de teóricos, majoritariamente italianos, propôs uma pequena inversão, não só semântica, mas também conceitual e política. Com ela, a biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder e de sua racionalidade refletida tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução, sua vida.

A própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biológicos que afetam a população. Vida inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo. Como diz Lazzarato, a vida deixa de ser reduzida, assim, a sua definição biológica para tornar-se cada vez mais uma virtualidade molecular da multidão, energia a-orgânica, corpo-sem-órgãos. O bios é redefinido intensivamente, no interior de um caldo semiótico e maquínico, molecular e coletivo, afetivo e econômico.

Aquém da divisão corpo/mente, individual/coletivo, humano/inumano, a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza e se totaliza. E ao descolar-se de sua acepção predominantemente biológica, ganha uma amplitude inesperada e passa a ser redefinida como poder de afetar e ser afetado, na mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por Foucault: biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a potência da vida.

A biopolítica como poder sobre a vida toma a vida como um fato, natural, biológico, como zoè, ou como diz Agamben, como vida nua, como sobrevida. É o que vemos operando na manipulação genética, mas no limite também no modo como são tratados os prisioneiros da Al Qaeda em Guantánamo ou os adolescentes infratores nas instituições de “reeducação” em São Paulo. Mas os atos de auto-imolação espetacularizada que esses jovens protagonizam em suas rebeliões, diante das tropas de choque e das câmaras de televisão, parecem ser a tentativa de reversão a partir desse “mínimo” que lhes resta, o corpo nu, e apontam numa outra direção.

Muito cedo o próprio Foucault intuiu que aquilo mesmo que o poder investia - a vida - era precisamente o que doravante ancoraria a resistência a ele, numa reviravolta inevitável. Mas talvez ele não tenha levado essa intuição até as últimas consequências. Coube a Deleuze explicitar que ao poder sobre a vida deveria responder o poder da vida, a potência “política” da vida na medida em que ela faz variar suas formas e, acrescentaria Guattari, reinventa suas coordenadas de enunciação. De maneira mais ampla e positiva, essa potência da vida no contexto contemporâneo equivale precisamente à biopotência da multidão, tal como descrita acima.

Ainda uma palavra sobre a multidão. Tradicionalmente o termo é usado de maneira pejorativa, indicando um agregado indomável que cabe ao governante domar e dominar. Já o povo é concebido como um corpo público animado por uma vontade única. Com efeito, como o diz Paolo Virno, e nas condições contemporâneas isso é ainda mais visível, a multidão é plural, centrífuga, refratária à unidade política. Ela não assina pactos com o soberano e não delega a ele direitos, seja ele um mulá ou um cowboy. Ela inclina-se a formas de democracia não representativa. Talvez ela seja regida por uma lei-esquiza, tal como os nômades de Kafka.

Numa fórmula sugestiva, Virno ainda diz: a multidão deriva do Uno, o povo tende ao Uno. O que é esse Uno do qual a multidão deriva? Para ir rápido, é o que Simondon chamou de realidade pré-individual (e que os pré-socráticos chamavam de a-peiron, ilimitado), que Tarde referiu como virtualidade, que Marx designou por intelecto geral. Chamêmo-lo de caldo biopolítico, esse magma material e imaterial, corpo-sem-órgãos que precede cada individuação - a potência ontológica comum.

A multidão, na sua configuração acentrada e acéfala, no seu agenciamento esquizo, pode ser vista como o oposto da massa. Canetti lembra que na massa são abolidas todas as singularidades, nela reina a igualdade homogênea entre seus membros (cada cabeça equivale a cada outra cabeça), a densidade deve ser absoluta (nada deve se interpor entre seus membros, nada deve abrir um intervalo em seu meio) e, por último, nela predomina uma direção única, que se sobrepõe a todas as direções individuais e privadas, que seriam a morte da massa.

Homogênea, compacta, contínua, unidirecional, a massa é todo o contrário da multidão, heterogênea, dispersa, complexa, multidirecional. A economia paranóica da massa e a lógica esquizo da multidão são diametralmente opostas, mesmo que elas se encavalem, como o notaram Deleuze e Guattari a propósito da relação entre massa e malta. De todo modo, as religiões, bem como os Estados, sempre souberam usar e dosar a energia da massa e seus afetos, mas encontram-se em situação inteiramente distinta em relação à multidão, que testemunha de um outro desejo e de uma outra subjetividade.

Eu concluo. Talvez Foucault continue tendo razão: hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação (de um povo sobre outro, por exemplo) e contra a exploração (de uma classe sobre outra, por exemplo), é a luta contra as formas de assujeitamento, isto é, de submissão da subjetividade, que prevalecem. Talvez a explosividade desse momento tenha a ver com a extraordinária superposição dessas três dimensões.

Voltam as perguntas insistentes: como pensar as subjetividades em revolta? Como mapear o sequestro social da vitalidade na desmesurada extensão do Império e na sua penetração ilimitada, tendo em vista as modalidades de controle cada vez mais sofisticadas a que ele recorre, sobretudo quando ele se realavanca na base do terrorismo generalizado e da militarizaçao do psiquismo mundial? Mas como cartografar igualmente as estratégias de reativação vital, de constituição de si, individual e coletiva, de cooperação e autovalorização das forças sociais avessas ao circuito formal da produção?

Como acompanhar as linhas de êxodo e desinvestimento ativo dos “excluídos”? Em que medida a virtualidade da multidão extrapola o sistema produtivo atual e suas vampirizações, os modelos de subjetivação que ele engendrou (por exemplo, o do trabalhador assalariado), os cálculos do poder que ele suscita, a captura imperial e suas linhas de comando? Além de recusar o sistema de valores e de exploração hegemônicas, como cria ela suas próprias possibilidades irredutíveis, mesmo quando isso é feito a céu aberto, nem que o Imperador esteja por perto, à espreita, espiando para ver no que poderia ele capitalizar aquilo que dele escapa?

Não sei o quanto as poucas páginas de Kafka sobre a Muralha da China refletem a paranóia do Império contemporâneo, com suas estratégias frustras para proteger-se dos excluídos que ele mesmo suscita, cujo contingente não pára de aumentar no coração da capital, numa vizinhança de intimidação crescente e num momento em que, como diria Kafka, sofre-se de enjôo marítimo mesmo em terra firme. Não sei o quanto os nômades de Kafka, na sua indiferença ostensiva em relação ao Império, não podem ajudar a pensar a lógica da multidão.

Seja como for, em Kafka uma ironia fina vai solapando a solene consistência do Império. Há algo no funcionamento do Império que é puro disfuncionamento. Quando, nas Conversas com Kafka, Janoush diz ao escritor checo que vivemos num mundo destruído, este responde: “Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado”.

Rachaduras e estalos que Kafka dá a ver, e que a situação contemporânea escancara. Talvez o desafio atual seja intensificar esses estalos e rachaduras a partir da biopotência da multidão. Afinal o poder, como diz Negri inspirado em Espinosa, é superstição, organização do medo: “Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais baixo: este ponto... é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas são as mais pobres e as mais exploradas; ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe; pois tudo isso é a vida e não a morte”.

O texto acima foi originalmente publicado na revista francesa “Multitudes”, número 9, de maio-junho de 2002. Peter Pál PelbartÉ doutor em filosofia e professor na PUC-SP. É tradutor e estudioso da obra de Gilles Deleuze (traduziu para o português "Conversações", "Crítica e Clínica" e parte de "Mil Platôs"). Escreveu sobre a concepção de tempo em Deleuze ("O Tempo Não-reconciliado", Perspectiva, 1998), sobre a relação entre filosofia e loucura ("Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão", Brasiliense, 1989, e "A Nau do Tempo-rei", Imago, 1993) e publicou, mais recentemente, "A Vertigem por um Fio: Políticas da Subjetividade Contemporânea", Iluminuras, 2000.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

1989 - Samuel Beckett morre aos 83 anos


Com o título de "Autor do silêncio", em 27 de dezembro de 1989, a Ilustrada noticiou a morte do dramaturgo Samuel Beckett, aos 83 anos, ocorrida em 22 de dezembro. Beckett passou por um período de internação em um hospital de Paris.

Para o diretor teatral Antunes Filho, Beckett detectou o mal. José Celso Corrêa Martinez disse que o dramaturgo irlandês fez "o teatro do fim do teatro". Autor de obras teatrais seminais, como "Esperando Godot", Beckett explorava em seus escritos temas como o vazio, a solidão e o desgosto, reflexos do seu crescente isolamento do mundo.

Ao ser indicado ao prêmio Nobel em 1969, ele entrou em pânico. Mais tarde, se acalmou ao ler em um jornal que seu nome havia sido descartado pela Academia Sueca. Dias depois, para sua frustração, Beckett foi anunciado o vencedor, conta o texto.



 Dramaturgo Samuel Beckett, prêmio Nobel, morreu aos 83 anos em 27 de dezembro de 1989




Esperando Godeaux


"Beckett havia me contado que Godeaux era um ciclista famoso, um campeão no Tour de France em eras remotas que, num determinado campeonato, simplesmente não chegou, não apareceu no Champs-Elysées. E o povo ficou lá, a esperá-lo. Achando isso muito curioso, Beckett usou o "conceito" da coisa e construiu os seus Didi e Estragon e deu o título da peça: Esperando Godot, assim pondo "God" no título".

Gerald Thomas
na Revista Bravo - Janeiro de 2006 - Ano 9 - Nº 101 - p.105

domingo, 13 de dezembro de 2009

Lendo...


No ônibus, terminei de ler o segundo ato. Cada ato tem cerca de 100 páginas na edição que tenho. São atos inconstantes. Coisas boas e coisas tão fracas. Isso facilitará um primeiro corte. Apesar de ficar muito claro que o jogo se repete. O jogo do primeiro inaugura. O jogo do segundo assegura. Eu não paro de pensar na inversão. Começar pelo segundo ato é começar lá na frente, no futuro ou no presente? Começar no primeiro é começar no passado ou no presente? Já que o tempo está assim sem crédito, em confusão, a idéia de que tudo está acontecendo sempre da mesma forma é muito grande. Pozzo fica cego. Lucky fica mudo. Privações de um ato para o outro. Não seriam eles como são? Um cego e outro mudo? O que os cala, o que os blinda a visão? Não sabem talvez como continuar no jogo, por isso inventam os artifícios? Didi e Gogo. Ainda presos um ao outro. Que mistério é o que se cruza entre os dois? Que estranho espaço teram inventado que, às vezes, malgrado suas vontades, não conseguem deixar de se falar? O menino que chega e já é previsto. Não há nada novo. Nunca houve. Por vezes pensamos que possa haver, mas não há. O que fazer?



 

 

um filme de Michael Lindsay-Hogg

“A Condição Humana”


Por Thiago Rodrigues Braga. Estudante de Ciências Humanas da Universidade Federal de Goiás.

Ao começar sua obra, A condição humana, Hannah Arendt alerta: condição humana não é a mesma coisa que natureza humana. A condição humana diz respeito às formas de vida que o homem impõe a si mesmo para sobreviver. São condições que tendem a suprir a existência do homem. As condições variam de acordo com o lugar e o momento histórico do qual o homem é parte. Nesse sentido todos os homens são condicionados, até mesmo aqueles que condicionam o comportamento de outros tornam-se condicionados pelo próprio movimento de condicionar. Sendo assim, somos condicionados por duas maneiras:
  1. Pelos nossos próprios atos, aquilo que pensamos, nossos sentimentos, em suma os aspectos internos do condicionamento.
  2. Pelo contexto histórico que vivemos, a cultura, os amigos, a família; são os elementos externos do condicionamento.
Hannah Arendt organiza, sistematiza, a condição humana em três aspectos:
  • Labor
  • Trabalho
  • Ação
O labor é processo biológico necessário para a sobrevivência do indivíduo e da espécie humana. O trabalho é atividade de transformar coisas naturais em coisas artificias, por exemplo, retiramos madeira da árvore para construir casas, camas, armários, objetos em geral. É pertinente dizer,- ainda que cedo-, para a autora, o trabalho não é intrínseco, constitutivo, da espécie humana, em outras palavras, o trabalho não é a essência do homem. O trabalho é uma atividade que o homem impôs à sua própria espécie, ou seja, é  o resultado de um processo cultural. O trabalho não é ontológico como imaginado por Marx. Por último a ação. A ação é a necessidade do homem em viver entre  seus semelhantes, sua natureza é eminentemente social. O homem quando nasce precisa de cuidados, precisa aprender e apreender, para sobreviver. Qualquer criança recém nascida abandonada no mato morrerá em questão de horas. Por isso dizemos que assim como outros animais o homem é um animal doméstico, porque precisa aprender e apreender para sobreviver. A mesma coisa não acontece com aqueles animais que ao nascer já conseguem sobreviver por conta própria, sem ajuda. A qualidade da ação supõe seu caráter social ou como escreve Hannah, sua pluralidade.

Tanto ação, labor e trabalho estão relacionados com o conceito de Vita Activa. Para os antigos, a “Vita Activa” é ocupação, inquietude, desassossego. O homem, no sentido dado pelos gregos antigos, só é capaz de tornar-se homem quando se distancia da “vida activa” e se aproxima da vida reflexiva, contemplativa. É justamente nessa visão de mundo grega que os escravos não são considerados homens. O escravo ao ocupar a maior parte de seu tempo em tarefas que visam somente à sobrevivência de si e de outros, é destituído do conceito grego de homem, mas por outro lado ele não deixa de ser humano. Portanto, dentro dessa lógica só é homem aquele que tem tempo para pensar, refletir, contemplar. Nietzsche afirma em seu “Humano, desmasiado humano” que, aquele que não reserva, pelo menos, ¾ do dia para si é um escravo. A base disso encontramos em  Sócrates: se é apenas para comer, dormir, fazer sexo, que o homem existe, então, ele não é homem, é um animal. Pois assim era visto o escravo: um animal. Um animal necessário para à formação de “homens”. É muito importante salientar que a escravidão da Grécia antiga é bem diferente da escravidão dos tempos modernos. Pois, na era moderna a escravidão é um meio de baratear a mão-de-obra, e assim, conseguir maior lucro. Na antiguidade a escravidão é um meio de permitir que alguns, por exemplos,  os filósofos, tivessem o controle do corpo, das necessidades biológicas; a temperança. Para os gregos, a escravidão, do ponto de vista de quem se beneficia dela, - os próprios filósofos da época - salva o homem de sua própria animalidade, e não lhe prende às tarefas pragmáticas. A dignidade humana só é conquistada através da vida contemplativa, reflexiva: uma vida sem compromisso com fins pragmáticos.

A religião cristã toma emprestado a concepção de mundo grega, e vulgariza a dignidade humana. Agora qualquer indivíduo pode, e deve viver, uma vida contemplativa. Enquanto na Grécia antiga a vida contemplativa era destinada aos filósofos, no cristianismo ela é destinada a todos. Essa é única forma que o cristianismo encontra para convencer os homens a rezar.

Hannah Arendt identifica três forma dicotômicas de trabalho:
  • improdutivo e produtivo
  • qualificado e não qualificado
  • intelectual e manual.
Como a intenção da autora é mostrar a fraqueza do pensamento de Karl Marx, ela diz que o conceito de trabalho usado por Marx, é  um conceito comum de sua época: trabalho é trabalho produtivo. Segundo a autora esse conceito de trabalho produtivo, isto é, trabalho que produz objetos, matéria; eclodiu das mãos dos fisiocratas. A escolha de Marx pelo uso do termo trabalho como trabalho que produz, que gera, que cria, estava em moda na época.

Com o avanço do processo de industrialização haveria de designar algum nome para todo aquele trabalho que não estava ligado ao trabalho industrial, daí nasceu o trabalho intelectual em contraposição ao trabalho manual. Tanto um como outro, faz uso das mãos, quando colocados em prática. O intelectual precisa das mãos para escrever seu pensamento. Nesse sentido o trabalho intelectual também é trabalho manual. É dessa forma que o trabalho intelectual é integrado dentro do conceito “trabalho” da revolução industrial. A ideologia que atravessa os tempos modernos é a seguinte: Qualquer coisa que se faça tem que ser necessariamente produtivo, tudo deve ser transformado em mercadoria, ou seja, o valor de troca tem a última palavra.

Qual é o caráter objetivo implícito do conceito “força de trabalho” em Marx? Compreende que todos tem a mesma força de trabalho, até mesmo aqueles que são fisicamente mais fracos. Assim, Marx consegue formar o conceito de “valor de troca”, tempo de trabalho necessário dispendido para produzir um objeto. Necessário para quem? Para todos. Se o tempo médio da produção de um sapato é 6 horas, todos os trabalhadores devem se adequar. Marx não explica como ele consegue calcular o tempo médio abstrato, o tempo social? Portanto, ele, pressupõe que todos devem ter a mesma força de trabalho, e desconsidera as diferenças subjetivas. É obvio que uma criança não tem a mesma força de trabalho de um adulto, nem o deficiente físico terá a mesma força, sem falar nas diferenças mais minuciosas. Em suma, Marx pensava que todos devem ter a capacidade de produzir um mesmo objeto num tanto “x” de horas. E é isso que será exigido pelos proprietários dos meios de produção.

A força de trabalho é aquilo que o homem possui por natureza, só cessa com a morte. Diferente do produto, a força de trabalho não acaba quando o produto termina de ser produzido. Portanto, a força de trabalho é aquilo que Hannah Arendt entende por “labor”. “O labor não deixa atrás de si vestígio permanente”. ( 101, Arendt). Arendt dá alguns exemplos que nos pode ajudar entender o conceito de labor. Qual é a diferença entre um pão e uma mesa? A mesa pode durar anos e o pão dura, como muito, dois dias. O trabalho é força gasta para produzir a mesa. O labor é a força dispendida para produzir o pão. Mesa: objeto material produzido para o uso cotidiano e ocupa lugar no espaço. Pão: elemento material produzido para à sobrevivência de seres vivos e não ocupa lugar no espaço, visto que durante a digestão o pão é transformado em energia do corpo.

“O que os bens de consumo são para a vida humana, os objetos de uso são para o mundo do homem”.(Arendt) O bem de consumo é o pão e o objeto de uso é a mesa. O primeiro permite a vida; o segundo é necessário aos relacionamentos humanos. Em suma, o homem se torna dependente daquilo que que produz. E para a autora, tornar-se dependente é torna-se condicionado. Daí encontramos a justificativa do nome do livro: “A condição humana”. Quais são as condições que o homem se impõe e se submete para permanecer em sociedade, para viver em coletividade? Se fossemos analisar essa questão mais pormenorizadamente teriamos necessariamente de falar sobre auto-repressão do prazer, aquilo que  Freud chama de controle do superego sobre o id. Mas não podemos esquecer que o nosso fim neste trabalho é perscrutar alguns aspectos e vertentes que o trabalho tem na obra da escritora alemã.

Sendo assim, como entender uma realidade que tem como pedra de toque o que chamamos trabalho? Para que o mundo dê curso à vida é preciso transformar o abstrato em matéria, o impalpável no palpável. Isso é uma necessidade humana. Sociedades ocidentais e não-ocidentais (tribais) realizam esse processo de maneiras diferentes. Na primeira, existe o valor de troca, na segunda, não há valor de troca. A palavra trabalho é um termo, conceito, ocidental que é constitutivo do capitalismo, das sociedades ocidentalizadas. E este conceito não pode ser aplicado nas sociedades não ocidentalizadas, onde o capitalismo não existe. Portanto, não faz sentido dizer que os índios trabalham. Eles não trabalham, apenas realizam atividades.

Estamos num ponto delicado do nosso trabalho. Um ponto que é ignorado por grande parte de estudiosos das ciências. A afirmação: os índios não trabalham, não quer dizer que eles são preguiçosos, quer dizer que eles não produzem valor de troca, portanto, não realizam trabalho. Quando Marx pensa que o trabalho pode ser constitutivo do homem, ele não está usando como pressuposto o conceito valor de troca. E, é importante entender isso, porque esse foi o lugar onde ele foi mais mal interpretado. Peço que esqueçam do conceito valor de troca por um momento. Vamos imaginar aquela velha história do homem que se encontra isolado, sozinho numa ilha. Ele quer encontrar alguma forma para sair da ilha. E para isso ele deverá construir um barco,  irá trabalhar. Antes de construir o barco o homem tem a idéia do que seja um barco, isto é, ele já viu um barco pelo contato direto. Ao ver um barco pela primeira vez, ele forma o conceito de barco. Então, imagina um barco, cria a imagem na mente, para depois construí-lo. A construção do barco dependente necessariamente do conceito  barco. Esse exercício de imaginar e depois construir é próprio do ser humano, e, é nesse sentido que Marx diz que o homem é o único animal que trabalha. O homem imagina e depois faz. Se acrescentamos o valor de troca, temos o trabalho capitalista. O trabalhador da fábrica sabe de antemão qual objeto irá produzir, sabe para que será usado. Todo objeto antes de ser construído tem sua finalidade, sua utilidade.

Nesse aspecto entre o meio (recurso usado para obter um fim) e o fim, temos a distinção entre objeto e instrumento. O instrumento é usado para produzir o objeto, por exemplo, o alicate é usado na produção de automóveis. Uma vez acabada a produção do automóvel, este serve como meio de transporte. A princípio temos o automóvel como fim, e num segundo momento temos o automóvel como meio. Ele é um fim em relação ao alicate, e depois, é um meio em relação ao homem. Se em relação ao alicate temos um objeto, em relação ao homem temos um instrumento. É nesse sentido que Arendt fala que existe um processo circular entre meio e fim, instrumento e objeto; em que todo fim se torna meio e todo meio se torna fim. Assim nos explica Hannah Arendt: “Num mundo estritamente utilitário, todos os fins tendem a ser de curta duração e a transformar-se em meios para outros fins.”(Arendt, 167)

Nenhum instrumento é produzido a bel-prazer, é produzido para atender ao tipo de objeto desejado. O que realmente importa ao empregador é o objeto final acabado, o instrumento é apenas o meio. Por isso dizemos que os meios de produção são instrumentos usados para gerar mais-valia. Usados por quem? Pelo trabalhador assalariado. Quando o assalariado não percebe que o uso que ele faz do instrumento, - seu trabalho -, gera mais-valia, dizemos que ele se encontra num estado de alienação.

Vamos voltar um pouco na distinção entre trabalho e labor. Já foi dito que o labor é trabalho gasto para produção de alimentos. Portanto, é o que mantem a saúde do indivíduo. Só assim ele poderá trabalhar. Nesse aspecto o labor é pré-requisito do trabalho. O que quer dizer isso? Não é possível, (dentro dos termos de Arendt), existir trabalho sem labor, ainda que seja possível o inverso. Ao passo que o labor produz a matéria para incorporá-la ao organismo, o trabalho a produz para que esta seja usada na produção de outros objetos e na materialização do abstrato (exemplo, colocar no papel uma idéia).

Uma outra distinção entre trabalho e labor consiste em que, enquanto o labor exige o consumo rápido ou imediato, o trabalho não. A lógica do trabalho é a durabilidade dos objetos. Sua durabilidade permite a acumulação e estoque dos objetos.


"DOGVILLE ou quando a vida é reduzida a um ciclo interminável de produção e consumo"



Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima
Professora Assistente Doutora, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, USP. Membro do Laboratório de Estudos e Pesquisa “Arte e Corpo em Terapia Ocupacional”.

No inquietante filme de Lars von Trier, Dogville, após um final absolutamente constrangedor, até pela sensação de alívio que a vingança provoca, somos confrontados com imagens reais de miséria e abandono que, por mais esforço que se faça para que esqueçamos, também encontramos nos EUA. Assim, o filme parece tratar, sobretudo se dermos crédito a grande parte da crítica especializada (ver, por exemplo Christian Petermann, 2003), de uma parábola antiamericana sobre as relações de uma sociedade fechada e comunitária e, aparentemente solidária, com um forasteiro.

Em relação a isso, Inácio Araújo (2004) tem razão quando diz que, nesses tempos de violência americana espalhada pelo globo, apresentar um filme como antiamericano é quase um lance de marketing. Mas dizer que Dogville é apenas antiamericano parece pouco.

Lars von Trier conta que ao ser criticado em Cannes por um jornalista americano por fazer um filme que se passava nos EUA sem nunca ter estado lá (o jornalista se referia a Dançando no escuro), resolveu que faria mais filmes cujas histórias se passassem na América, mas continuaria não pisando lá. Queria manter um olhar estrangeiro e um ponto de vista próprio construído pela força com que a cultura americana e seus produtos invadem todas as outras culturas (Trier, 2004). No entanto, é o próprio diretor quem nos alerta, a parábola que Dogville encena é sobre os Estados Unidos, mas é também sobre qualquer pequena cidade em qualquer lugar do mundo. “I think that people are more or less the same everywhere” (Trier, 2004).

E se o diretor oscila em suas declarações públicas a respeito de Dogville ser ou não um filme sobre a América, se a crítica se exaspera com o fato de um diretor filmar sobre algo que “não conhece”(ver Caligaris, 2004), esta questão parece menor diante daquilo que o filme sugere: as mentes estreitas, ou os tartufos (Araújo, 2004), estão por toda parte neste mundo no qual o império dominou até os mais recônditos espaços de nossas mentes e de nossos corações. Não é de se estranhar que uma reportagem recente publicada na Revista Veja (Costa, 2004) sobre um novo programa da televisão chinesa que “ensina os chineses a consumirem como os ocidentais” - e que tem sido acolhido com altos índices de audiência pela população -, termine com a afirmação de que “os chineses estão cada dia mais parecidos com o resto da humanidade”.

Assim, as relações de atração, repulsa, sedução e opressão entre uma comunidade e a figura do estrangeiro, encenadas no filme, podem estar em íntima conexão com o que se passa na sociedade americana, mas não só. Neste sentido, o sentimento que predomina, também nos personagens do filme, mas principalmente no expectador, é o de um profundo desconforto com as forças que vão se delineando pouco a pouco na trama das relações. Não seriam essas forças bastante familiares para nós? Talvez, mais que antiamericana, esta parábola do cineasta seja um grito contra o modo de vida hegemônico no capitalismo e que nos atravessa a todos. Como se o diretor quisesse dizer que este funcionamento global tira de todos o que cada um tem de pior.

Hannah Arendt, em seu livro A condição humana (2003), desenvolve a idéia de que a forma de existência predominante no contemporâneo praticamente reduziu todas as atividades que realizamos, em especial a capacidade de produzir obras e realizar ações, ao denominador comum de um labor voltado a assegurar as coisas necessárias à vida do nosso corpo biológico, produzi-las e consumi-las. Esta vida que o labor visa manter se refere ao processo biológico do corpo humano. A autora toma a distinção grega entre zoe (a vida comum a todos os seres vivos) e bios (a vida especificamente humana, plena de eventos e que constitui uma maneira de viver peculiar). Giorgio Agambem, partindo da mesma distinção, denomina o primeiro tipo de vida de vida nua, afirmando que o regime contemporâneo exerce um poder sobre a vida que, travestido de defesa da vida, a reduz à sua modalidade biológica (Pelbart, 2003).

O homem reduzido ao labor e à manutenção de uma vida nua está aprisionado, segundo Arendt, a uma atividade que se desenvolve de forma cíclica e repetitiva, cujo único objetivo é a produção cada vez maior de coisas pouco duráveis a serem consumidas, e que não termina senão com a exaustão da força de trabalho. Quando tudo que fazemos se resume a este mecanismo de produção incessante de bens perecíveis e consumo incessante desses mesmos bens, deixamos de construir um mundo e de estar entre os homens como seres políticos e ficamos reduzidos às nossas necessidades privadas. Segundo a autora, toda a nossa economia tornou-se economia do desperdício, na qual tudo deve ser devorado. Hoje consumimos incessantemente, não apenas coisas tangíveis, mas, sobretudo, imagens e signos. Vivemos a futilidade de uma vida que não se realiza em coisa alguma que seja permanente; perdemos o mundo comum. Tornamo-nos seres inteiramente privados: privados da presença dos outros, da realidade que advém de compartilhar um mundo, de realizar algo permanente. Tornamo-nos prisioneiros de uma subjetividade encapsulada.

Para esses pobres seres privados que somos nós, a única experiência de espaço público que resta é a exposição daquilo que outrora pertencia ao âmbito da vida privada, o que talvez possa ajudar a compreender a onda de reality shows espalhados pelo mundo e a crescente exposição da esfera privada das celebridades (ou não) nas diversas mídias. Como o efeito causado pelo cenário de paredes invisíveis e pela transparência de alguns objetos e materiais criados por Lars von Trier em DogVille, que igualam o movimento da rua e o movimento de dentro de casa, tornando, para o espectador, todos os espaços indistintamente públicos e privados.

Neste contexto, qualquer tempo livre, não dedicado ao trabalho em sua qualidade de labor, volta-se para o consumo. Como em Dogville, as horas vagas, adquiridas por cada um dos habitantes da pequena vila a partir da oferta de Grace, e que poderiam libertá-los, ao menos um pouco, do ciclo interminável do labor, só podem ser gastas com a atividade incessante de consumir a própria forasteira.

O chamado “tempo livre” neste modo de vida
jamais é gasto em outra coisa senão em consumir; e quanto maior é o tempo de que se dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os apetites. O fato de que estes apetites se tornam mais refinados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida, mas ao contrário visa principalmente as superfluidades da vida, não altera o caráter desta sociedade; acarreta o grave perigo de que chegará o momento em que nenhum objeto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo. (Arendt, 2003, p.146)
A esse pensamento o filme de Lars von Trier parece acrescentar que nem mesmo os homens estarão a salvo de se tornarem objetos desta dinâmica. A figura de Nicole Kidman/Grace, sempre bela e limpa, destoando dos habitantes locais mesmo depois de longo período de convivência com eles, se oferecendo e se colocando à disposição do outro, nos faz pensar de algum modo numa imagem publicitária: é a própria encarnação da felicidade ao alcance de todos e ao mesmo tempo inatingível – tão perto, tão longe.

A oferta sem limites cria e recria uma demanda sem fim e que jamais poderá ser respondida ou aplacada. A demanda criada provoca um incansável movimento de consumo e de insatisfação. Consumir tudo, inclusive o outro que se oferece. É disso que trata o filme; é disso que se trata no capitalismo.

E se o capitalismo conseguisse capturar a totalidade da existência e não houvesse margens, bordas ou qualquer saída, não restaria senão a aniquilação de todos os habitantes da pequena cidade perpetrada no final do filme, equivalente da aniquilação dos habitantes do planeta. Seríamos, mesmo, todos tartufos, sem esperança nem futuro.

Mas, apesar da poderosa máquina de produção subjetiva que constrói e captura nossos desejos, há sempre algo que escapa e pulsa nas bordas desse modo de vida, desenhando, impertinentemente, pequenas saídas, outros possíveis. São esses processos microscópicos que o filme de Lars von Trier não alcança captar. Seu mapa, detendo-se nos estados de coisa já dados, não acompanha os movimentos intensivos que escapam a esses estados de coisa e não revela as milhares de linhas de diferenciação que se insinuam cotidianamente por entre as malhas rígidas do capitalismo mundial integrado.

Talvez, neste ponto, devêssemos recordar Foucault (2002), para quem ali onde incide o poder, ali também se exerce a resistência. Se o poder contemporâneo investe sobre a vida, reduzindo-a a sua modalidade orgânica e biológica (como quer Agambem), e limita todas as atividades humanas ao labor (como sugere Arendt), as forças que resistem a este poder se apóiam sobre aquilo mesmo que ele investe, a vida, e buscam expressão na realização de atividades que escapem à lógica do labor.

Ao poder sobre a vida se opõe a potência da vida, aquilo que nela não se deixa aprisionar, sua qualidade de indeterminação, sua capacidade de reinventar-se, tomar novas forma e fazer-se vida qualificada. Esta vida como bios, a qual Aristóteles se referia dizendo que é de certa forma uma espécie de práxis, só pode ser afirmada se restituirmos às atividades humanas suas qualidades de construir um mundo comum e tecer a rede das relações humanas. E se todas as atividades humanas foram reduzidas à condição de labor, no sentido da manutenção desta vida nua, a arte permanece sendo uma forma de resistência das mais poderosas.

Uma das poucas atividades que ainda nos permitem criar um mundo, conferindo durabilidade e permanência ao caráter efêmero do tempo humano, e obras que escapam à aniquilação pelo ciclo incessante da produção e do consumo. Como nos propõe Deleuze (1999), a obra de arte é um ato de resistência. Ato que resiste à morte e, ao construir um mundo comum, apela por um povo que ainda não existe, contribuindo para a invenção de outras formas de vida.

Referências

ARAÚJO, I. Von Trier enxerga apenas martírio dos perfeitos. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 mar. 2004. Ilustrada, p.E8.
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
CALIGARIS, C. Filme do cão. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jan. 2004. Ilustrada, p.E9.
COSTA, R. A rainha da classe média: o sucesso do programa de TV que ensina os chineses a consumir
como os ocidentais. Rev. Veja, p.65, 21 abr. 2004.
DELEUZE, G. O ato de criação. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jun. 1999. Caderno Mais!, p.4-5.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
PELBART, P. P. Vida capital. São Paulo: Iluminuras, 2003.
PETERMANN, C. Dogville. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 a 30 out. 2003. Guia da Folha, p.5.
TRIER, L. V. About Dogville. Disponível em: www.dogville.dk. Acesso em: 10 mai. 2004.

 

sábado, 12 de dezembro de 2009

Plásticas.


Klimt, Gustav
Medicine (composition draft)
1897/98


1982


Las Meninas
1956


Picasso, Pablo
Las Meninas (after Velazquez)
Cannes, 17 August 1957

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Pesquisando.



Artifício da Nuvem. Se ela não existe, plena, concreta, a gente pode muito bem inventar. Papel, impressão, holograma, photoshop. Qualquer coisa que crie uma pele de nuvem e que nos convença de que sim, ainda sem aqui estar, a nuvem existe para nós.

Não tem a ver com a imagem, as cores, nada disso aqui faz sentido. Chamo atenção para o uso recorrente do ARTIFÍCIO, do ESCAPE, da SUPERFÍCIE. Atenção ao uso de uma imagem qualquer como fuga do real. Se em PAS-DE-DEUX o personagem masculino tenta dispersar a realidade ocupando-se com ações físicas, com ações verbais que narrem seu trajeto físico, em ESPERANDO GODOT, tentam dispersar a realidade falando sobre ela, a realidade, e sobre a tentativa de dispersão da mesma. Ou seja: Metalinguagem.


Segue um poema do Drummond,


Poema de Sete Faces
Carlos Drummond de Andrade
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


O que fica deste poema é apenas a sua última estrofe. Sempre me chamou atenção como Drummond constrói uma sequência de versos elucidativa sobre como escapar da realidade (ou mesmo, sobre como amenizá-la, dotá-la de outras cores, outros sentidos, poetizá-la). Sobre os subterfúgios, as maneiras inventadas pelo homem para escapar. Acho que a poesia (essa lua), o álcool (esse conhaque), entre outros, são válvulas de escape para lidar com o mundo. A desenvolver.



"Metateatro: inscrição do espetáculo no texto dramático"


[...]

1. Teatralidade e mimetismo

Ao pensar na arte teatral, é inevitável refletir sobre a teatralidade, concentrada na dimensão espetacular do fenômeno teatral – ou seja, no palco. Dessa perspectiva, teatralidade estaria em oposição a texto dramático; a este último, reserva-se o âmbito da narratividade, o primado da palavra, do diálogo; aquela opera na construção visual de signos, constituindo-se como uma linguagem à parte do texto. Contudo, o ponto de vista por nós adotado neste trabalho pretende colocar a questão de um outro ângulo, mais próximo da complementaridade do que da oposição. Dito de outro modo, a teatralidade não é privilégio do palco, podendo ser construída a partir do próprio texto dramático. Tudo que, no texto, contribui para a construção de sua visualidade, todos os signos que se configuram iconicamente (gesto, figurino, marcação de cena, objetos de cenário, entonação) são matrizes de imagens, são apelos à construção visual do leitor.

Percorrer a história da dramaturgia ocidental é deparar-se com diferentes concepções acerca da teatralidade que, todavia, giram em torno da mesma problemática: o questionamento da arte teatral como forma de representação do mundo. Um marco fecundo dessa reflexão é o século XIX, momento em que se estabelece a estética realista/ naturalista para quem o teatro é visto como imagem viva do real. O surgimento da fotografia e o desenvolvimento de técnicas cênicas, particularmente novos usos da iluminação, viabilizam a pretensão de tornar o palco um espaço de reprodução da vida, constituindo assim uma “teoria mimética da representação. Um mimetismo radical, que exclui qualquer idealização, qualquer estilização” (ROUBINE, 2003, p.110). Lançando mão dos mais variados expedientes, o palco naturalista procura elevar a ilusão dramática à máxima potência, transformando-se num microcosmo que espelha o real. Paradoxalmente, o resultado desse esforço é evidenciar que, mesmo quando a intenção é reproduzir o real, o teatro não consegue escapar das convenções; “a ideologia da ilusão leva os Naturalistas a esquecerem que a passagem do real para o palco implica sempre num ‘discurso’ sobre o real, e que não existe teatro sem convenção”, observa Fachin (2000, p.272). Mesmo a ilusão mais bem enredada é decorrente da técnica, da construção artística a partir de certas convenções estéticas. Roubine (2003) observa que nem mesmo o mais intransigente mimetismo consegue escapar de algum mecanismo de estilização, constatação que se torna o grande mérito da teoria teatral naturalista.
O interesse da teoria naturalista do teatro talvez esteja no fato de que ela funda uma dialética da representação. Ela se instala na tensão entre uma aspiração “moderna” à reprodução idêntica do real em todas as situações [...] e a rede de convenções sem as quais essa reprodução não consegue nem mesmo pensar em existir. O naturalismo se afirma contra as convenções existentes, mas, ao mesmo tempo, o naturalista sabe perfeitamente que as infletirá, as transformará talvez, mas não as fará desaparecer. (ROUBINE, 2003. p.112).
Se a estética naturalista defende um “mimetismo radical” – portanto, reduz o escopo da teatralidade –, a estética simbolista, ao sobrevalorizar o texto, a simbologia da palavra e da imagem poética, reduz radicalmente a importância da cena, chegando mesmo a considerá-la prejudicial ao texto. Na contracorrente do Naturalismo, os poetas simbolistas questionam radicalmente a possibilidade de compreender a arte como reprodução da realidade, propondo o resgate daquilo que a palavra tem de sugestivo, de alusivo a uma realidade não necessariamente concreta, mas principalmente possível, criada pelo olhar arguto e subjetivo do artista. “Para eles, a realidade sensível não é senão a aparente alusão a uma realidade espiritual superior” (ROUBINE, 2003, p.120). A representação teatral adquire – ou recupera, nas origens do próprio teatro – um caráter ritualístico, dando ênfase à recriação da palavra do texto dramático por meio de imagens cênicas revestidas de sentido simbólico. Sem nenhum receio da acusação de “textocentrismo”, o teatro simbolista assume que a mediação do palco é um risco ao texto; portanto, só é válido o espetáculo que consegue evidenciar as potencialidades líricas da palavra poética. O palco simbolista fica nu. Desprovido de aparato cenográfico, considerando o ator apenas um veículo de proclamação da palavra de um outro, o dramaturgo, o teatro simbolista acaba por “desvalorizar, se não eliminar, todos os outros elementos constitutivos da teatralidade” (ROUBINE, 2003, p.122).

A despeito da negação da teatralidade e a exemplo da estética naturalista, os simbolistas deixam um importante legado para a estética teatral do século XX. A simbologia proposta influencia tendências como o teatro do absurdo, que também recusa o mimetismo e os efeitos de ilusão, assim como veste a cena com imagens apenas apreendidas por um viés simbólico. Assim também alguns dramaturgos e encenadores, preocupados com a recepção teatral, defendem um maior espaço para a recepção do espectador, isto é, propõem abrir mão de mostrar tudo no palco para que a sugestão estimule a imaginação do público.

Por conseguinte, temos que ambas as estéticas, ao negarem a teatralidade, acabam por colocá-la em questão, procedimento fundamental para o desenvolvimento da estética teatral no século XX; aliás, assiste-se no período à “reteatralização” do teatro operada particularmente a partir das idéias e experimentalismos do russo Meyerhold. Em lugar da valorização da declamação do texto, são revalorizados signos que devolvem a teatralidade ao palco: o corpo do ator, mímica e dança, máscaras e figurinos, além do cenário que abandona a tendência de réplica do real para tornar-se uma imagem grávida de significações múltiplas; tudo colabora para que a representação recupere seu caráter teatral, como destaca apropriadamente Mostaço (2008, p.1):
Vsevoldod Meyerhold, ao propugnar o teatro teatral por ele forjado, insistia em destacar na cena exatamente sua característica construída, artística, resultado de signos inflados de significação que poderiam, facilmente, ser tomados como símbolos. A teatralidade, nessa acepção, surge valorada positivamente, como uma virtude artística.
2. Metateatro: matriz de teatralidade

Não coincidentemente esse processo acontece ao mesmo tempo em que a arte, em todas as suas manifestações, vive um momento de intensa reflexividade, de profundo questionamento sobre seus limites e alcances, funções e determinações. A metalinguagem torna-se uma marca da arte das primeiras décadas do século; também a arte teatral – entendida aqui em sua dupla configuração, isto é, literatura dramática e arte cênica – abraça a missão de refletir sobre sua configuração, não podendo escapar à questão sobre o que é o teatro e como ele se produz. O metateatro em suas múltiplas manifestações atende a essa nova necessidade do teatro. A peça dentro da peça, a inserção do discurso crítico no discurso ficcional, a criação de personagens com consciência dramática, o questionamento acerca das fronteiras entre o real e a representação do real, a ruptura da ilusão teatral por meio da desconstrução da quarta parede são alguns dos procedimentos que se fazem presentes nas obras da maior parte dos dramaturgos do século XX representantes das mais variadas tendências (Luigi Pirandello, Bertolt Brecht, Jean Anouilh, Samuel Beckett).

O metateatro coloca em cena os bastidores da criação espetacular, resgatando assim a percepção do espetáculo e do texto como construção intencional, reafirmando a teatralidade enfraquecida no final do século XIX. Ao apagar as fronteiras entre público e platéia, lembrar constantemente o espectador que ele está no teatro, interpor um narrador entre a ação representada e aquele que a assiste, criar personagens autônomas em relação a seu criador e àqueles que tentam representá-las no palco, perverter a configuração tradicional de categorias dramáticas como tempo, espaço, ação e diálogo, os dramaturgos modernos abrem caminho para que o metateatro seja uma nova matriz de teatralidade.

Pavis (1999, p.373), ao enunciar a questão “a teatralidade é uma propriedade do texto dramático?”, a coloca em termos da polêmica texto versus espetáculo; haveria uma espécie de texto dramático que visa à cena e dela necessita para alcançar plenitude – e por isso chamado de “teatro puro” – em oposição a uma outra espécie de texto cuja organização prescinde da atualização cênica, nomeado, então, “teatro literário”. O surgimento da figura do encenador, em fins do século XIX, desloca a questão da oposição entre teatro puro e teatro literário ao definir o palco como espaço primordial da construção da teatralidade, estabelecendo que “a teatralidade não surge mais, pois, como uma qualidade ou essência inerente a um texto ou a uma situação, mas como uso pragmático da ferramenta cênica, de maneira a que os componentes da representação se valorizem reciprocamente e façam brilhar a teatralidade e a fala”.

Embora a teatralidade seja mais evidentemente uma propriedade da cena, acreditamos que o texto seja também um espaço de sua construção, particularmente ao trabalharmos com a hipótese de que o metateatro revela os bastidores da construção do texto e do espetáculo. Para constatar a pertinência dessa abordagem, basta verificar como os signos teatrais disseminados no texto trazem uma teatralidade latente a partir da qual o receptor é convidado a construir mentalmente o espetáculo; mais do que isso, é instado a perceber a arte teatral como convenção, acordo necessário entre autor e platéia para que o prazer do jogo teatral seja possível, sinal evidente do caráter de construção estética da arte teatral.

[...]

Conclusão

O metateatro é um dos recursos encontrados pela dramaturgia moderna para reteatralizar o palco no século XX. Muitos signos teatrais – cenário, personagens, palavra, gestos, som – são trabalhados de modo a não permitir que o espectador mergulhe na ilusão, lembrando-o constantemente de estar no teatro e que tudo que se desenrola no palco é previamente estabelecido, calculado, programado. Assim, a dramaturgia moderna caminha para uma consciência aguda de seus anseios e limites, questionando formas dramáticas e técnicas de representação.

O texto dramático assume sua vocação teatral e se revela como espaço de inscrição virtual do espetáculo, reforçando a dupla natureza do fenômeno teatral. Nesse contexto, o metateatro pode ser compreendido como matriz de teatralidade por devolver a arte teatral ao terreno das convenções dramáticas; mais ainda, fazer dessas convenções objeto de reflexão do próprio teatro.

[...]

Grifos meus. | Fonte:
Metateatro: inscrição do espetáculo no texto dramático
Profa. Dra. Sonia Aparecida Vido Pascolati (UEL)

http://andrelg.pro.br/simp%F3sios/SONIA_PASCOLATTI.pdf