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quarta-feira, 31 de março de 2010

O Parto de Godot

e outras encenações imaginárias: a rubrica como poética da cena. Luiz Fernando Ramos (Ed. Hucitec. São Paulo. 1999.)


"Em Beckett, a rubrica será tão importante na "leitura" que o espectador venha a fazer do espetáculo, se ali ela for concretizada, quando naquela feita por quem a lê como literatura dramática, nas páginas do livro. Ela estabelece uma ocupação física do palco que não pode ser desconsiderada pelo eventual operador daquelas instruções, sob pena de perder-se a consistência, como ficção, da peça." ( pág 53)

"...Mas, a dramaturgia de Beckett exige tal controle sobre a transformação das indicações cênicas em cena efetiva que, não obedecê-las, equivale a modificar ou omitir as falas das personagens." ( pág 53)

"O notável, em Beckett, é que em suas peças as rubricas têm o mesmo estatuto que a fala das personagens, tornando-se inadequado pensá-las como secundárias, ou menos importante, na garantia do desenvolvimento dramático. E, se no plano estrito de sua literatura dramática, a rubrica é, incontestavelmente, indispensável para articular a ficção, ela também será imprescindível na formalização e concretização cênicas. Por exemplo, a direção do movimento das personagens no palco apontada na rubrica responde a um desenho previsto pelo autor, que remete a uma situação concreta, a presença física e significante das personagens indo nesta ou naquela direção. Se na maior parte dos autores uma indicação como esta - a direção na qual uma personagem movimenta-se - é, de fato, secundária, em Beckett ela será vital. Mesmo com infinita variedade de modos de executá-la, não cumpri-la é não só trair o autor como alterar completamente o curso da ação dramática.
Estragon- Vamos ( Eles não se movem.)" (pág 54)


A presença da rubrica na obra "Esperando Godot" define uma teatralidade específica que caracteriza, enfim, uma cena beckettiana. Uma das características "é, exatamente, ter nos movimentos minunciosamente prescritos para as personagens - as quais, a despeito de infinita variabilidade de montagem para montagem, permanecerão sempre tão definidos como as falas dos diálogos - função dramática tão ou mais importante que os diálogos. É com este olhar específico sobre as rubricas que examina-se a dramaturgia de Beckett, buscando identificar-se uma teatralidade típica, implícita nas didascálias." ( pág 54)
"...Em Esperando Godot os comentários sobre a cena que está armada e transcorrendo são menos explícitos, pois, mesmo carregados de duplo sentido, não rasgam o tecido da ficção. A afirmação de Vladimir -"O essencial não muda nunca." -, seguida do complemento de Estragon - "Nada a fazer." - é ambígua o suficiente para sugerir que ainda estamos no terreno de Eleuthéria. O diálogo que evidencia melhor um colocar em xeque da representação dramática é aquele em que Vladimir e Estragon agem como um coro para comentar a própria ação.
V- Que tarde encantadora estamos passando?
E- Inesquecível.
V- E ainda não acabou.
E- Parece que não.
V- Está só começando.
E- É terrível.
V- É pior que estar no teatro.
E- No circo.
V- No Music Hall.
E- No circo.
Mais a frente, depois que Estragon avisa que irá apanhar uma cenoura e não sai do lugar, Vladimir comenta- "Isso está ficando verdadeiramente insignificante", ao que Estragon replica - "Ainda não o bastante". De fato, durante toda a peça é mantido um nível mínimo de ações físicas bem definidas, que não só garantem o desenvolvimento dramático como evitam o que seria o desmascaramento completo das personagens como puros mecanismos teatrais. A alternativa de tentar calçar as botas surge como uma bênção justificando a própria existência daquelas personagens. Como diz Estragon - "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe, heim, Didi?", ao que Vladimir, impaciente, replica - "Claro, claro, nós somos mágicos", chamando em seguida atenção do parceiro para a bota e a necessidade de calçá-la, " antes que a gente se esqueça". Na sequência do segundo ato, depois da entrada de Pozzo e Lucky e sob a pressão dos chamados por socorro de Pozzo, Vladimir desabafa sobre a precariedade das condições em que ele e seu companheiro se encontram.
"Vamos fazer o melhor que pudermos, antes que seja tarde demais" Vamos representar com dignidade, pelo menos uma vez, o papel que o destino cruel nos reservou. Que é que você me diz? ( Estragon não diz nada) É evidente também que, se ficarmos de braços cruzados, sem fazer nada, pesando os prós e os contras, também faremos justiça à nossa condição." (pág 57)
"Beckett sempre utilizou as rubricas para detalhar ações físicas independentes e concomitantes às falas das personagens." (pág 59)