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quarta-feira, 18 de abril de 2012

Como agir uma poética da negação

Este texto é antes um anti-texto. O que ele quer dizer não se sabe de antemão. Começo escrevendo para que nesse movimento da escritura eu possa, quem sabe?, encontrar algo que busco com obstinado desespero. Quero dizer: no ano passado, comecei junto à professora Livia Flores uma pesquisa acadêmica intitulada Poéticas negativas como campo de relações entre teatro, artes plásticas e performance. Nesta, viemos desde então desbravando referências e objetos artísticos que se pautam num movimento inverso ao da “poética” tal como se referiam os gregos, a saber, poética como certo processo que traz à existência algo que antes não havia.

A síntese do problema, apresentada por Flores, questiona sobre o que acontece quando o sentido se inverte e algo passa a trabalhar justamente para deixar de ser.

Escolhi um objeto de estudo: VAZIO É O QUE NÃO FALTA, MIRANDA. Este aqui. Escolhi MIRANDA porque me parece ser esta peça justamente um esboço de certa poética, porém, não qualquer uma, mas justamente a tal poética “negativa”, essa criação que almeja justamente ser se des_sendo. Faz sentido? Não faz. Nem tem que fazer. Talvez faça. Com MIRANDA, apresentamos quatro atrizes e um diretor tentando encenar a obra ESPERANDO GODOT, de Samuel Beckett. Quando digo que apresentamos a tentativa, é já porque sabemos que não conseguiremos encenar esta peça.

ESPERANDO GODOT não me interessa no lugar onde se encontra. GODOT me interessa a partir do momento em que consigo perceber como ele não mais me interessa, como ela não me parece mais fazer sentido nos dias de hoje. Talvez para mim não faça sentido. Não faz mesmo. Talvez eu esteja querendo - não te obrigar a concordar comigo - mas, apenas, chamar a sua atenção para esta possibilidade: a de que certas coisas não nos são mais úteis como talvez tenham sido um dia (para outrem). Um esforço de atualização, por favor. Uma respiração do ar que nos circunda, agora.

Muita coisa. Enrolo-me em reflexões que me desnorteiam e anulam. Queria ser produtivo mas me lanço em impossibilidades. PARADOXO. Desse embate nascerá alguma coisa. Eu sinto, eu sei. Porque agendamos uma temporada do espetáculo para junho no Rio de Janeiro. Escrevo esta postagem pois quero agora - de fato - testar a criação desta poética negativa para, logo no adiante, apresentarmos a ti - cara Miranda - nossos ossos e nisso nosso ofício.

Por que deixar de ser? Ora, porque não quero mais ser isso que não quero mais ser.

Parece tão pessoal. E é. Você que nos vê/lê não precisa concordar. A gente concorda entre a gente. Eu, dramaturgo e diretor, e as quatro atrizes, nós concordamos que esperar Godot já deu no saco. Não queremos mais. Não quer dizer que não queremos esperar. O que não queremos é esperar o fulano lá, o dito-cujo. A celebridade ausente envolta em fascínio pós-guerra.

Desculpem-me. Atropelo-me. Muito. Liquidificador. Como agir uma poética negativa? Quer dizer que entraremos em sala de ensaio e pretendo refletir sobre os passos criativos aqui neste blog (como sempre foi). Porém, dessa vez, a operação empreendida foi trazida à consciência. E isso muda todo o percurso. Qual metodologia?

Eu sei estar agindo uma poética da negação. Eu sei que ESPERANDO GODOT não me interessa e mesmo assim estamos por sobre ele. Quer dizer: o que vai sair deste encontro? Qual será o saldo desse encontro se desde o início o encontro já se revela improfícuo e falido?

Em sua pesquisa, Flores sugere que uma poética da negação pode ser percebida como parte de um trabalho de reconfiguração do que se entende por arte, ao menos como afirmação de um desejo produtivo, que recusa a própria extinção. Aqui me reconheço e naqui me faço abrigo. Recuso esperar Godot e nisso recuso um mar de acostumamentos: recuso o vazio existencial, recuso o pós-guerra, recuso a auto-comiseração. Mas recusar tudo isso não me torna um rebelde quiçá vanguardista ou revolucionário. Recusar não resolve a vida. Recusar é movimento que abre sobre ti outra coisa, zona obscura, poço sem fim nem fundamento. Não é bem isso. Mas talvez seja. Quero dizer: agir uma poética negativa me torna alguém em densa busca sobre o essencial que se encontra perdido/escondido e misteriorisado dentro do meu trabalho (e do meu corpo).

Nem ligo. Grotowski vai nos ajudar. Eu sei que meu discurso é nublado e ofensivo. Paciência. Ou não. Recusar ESPERANDO GODOT para que a cada noite seja possível nascer VAZIO É O QUE NÃO FALTA, MIRANDA. Como Barthes define, MIRANDA é a nossa leitura de GODOT. Não quer ser universal, não se pretende como manual. MIRANDA é o saldo do nosso corpo-circuito com esta obra - ESPERANDO GODOT - hoje já tão massacrada e elevada pelo inconsciente coletivo de uma (ou mais) época(s).

Em que momento estamos?

Estamos sem uma dramaturgia escrita. Estamos nus. Mais uma vez, somos uma companhia de teatro imersa no caos criativo. Isso não nos assusta (apesar das atrizes já terem chorado, trocado injúrias e se ofendido). É esse o nosso ofício. Estamos ainda nos perguntando QUAL É O NOSSO PAPEL NISSO TUDO? Assim como os mendigos de Beckett.

Estamos sem uma dramaturgia escrita. Estamos sem fazer ideia de como será nossa encenação. Mas nós tínhamos uma peça não tínhamos? Sim, nós tínhamos. Não a temos mais. Ela estreou em 2010 e lá ficou. Hoje, mais que nunca, tememos essa peça que um dia tivemos. Por quê? Porque assim como ESPERANDO GODOT diz respeito a um dado momento, querer reencenar hoje a tal MIRANDA de 2010, tal como ela foi, daria no mesmo.

Confesso: o mote é recusar GODOT para descobrir sempre e de novo a cada dia o porquê de estarmos esperando MIRANDA.

Outra versão. A sensação que eu tenho é que a cada apresentação de MIRANDA uma nova versão do espetáculo será inaugurada. Talvez aí sim estejamos recusando a possibilidade de estar preso ao tempo. O nosso tempo é o agora. Só isso. É com você que nos vê/lê. Eu já escrevi algo sobre PERFORMANCE? Caso não tenha escrito, basta dizer que se trata apenas disso. É só sobre isso tudo isso. Mas tudo isso fica pra daqui a pouco, quando começarmos a nos mover.

Afinal, agora percebo: como agir uma poética da negação? Bom, talvez não seja essa a pergunta. Talvez exista apenas uma escolha, esta sim irrevogável. E ela já foi escolhida: uma poética da negação como agir. Uma poética da negação enquanto desfibrilador da arte (e nisso se encontra também a vida).

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