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domingo, 31 de janeiro de 2010

Falo...

   
A vontade é a de não parar de falar. Deixar o tempo ir passando e ir trocando com todos e qualquer um. Como isso é importante: falar sobre o que lhe tira o sono. Eis o que tenho feito e muitas coisas estão se clareando. Vou tentar colocar algumas questões que estão mais fortes para mim.

Metalinguagem | Não quero falar sobre este tema colocando as atrizes para manusearem a maquinaria teatral. Não é bem isso. Elas evidentemente passam por este lugar, mas ele é caminho, é meio, não fim. Não será uma mera exposição das partes constituintes da linguagem teatral. Todas estas partes serão usadas, volvidas, maculadas, justamente porque apontam - juntas - para um objetivo final, um supra-objetivo, se podemos usar o termo dessa forma. Aquilo que a metalinguagem assinala é a angústia criacional. Estamos falando de como é custoso e prazeroso e complexo montar uma obra de arte, uma peça teatral. Porém, como estamos fazendo teatro, tudo isso fica mais explícito e vivo. Usamos desta linguagem para mostrar como lutamos - com não somente palavras, mas também ações, gestos... - para atingir o sentido. Ainda está confuso, mas não tanto como estava no início.

Texto | Eu realmente vou tentar levar o original do Beckett até onde conseguirmos ir com ele. Ele é nossa margem, ele de certa forma nos dirá "vocês estão falando de Godot ainda"... A preocupação em sair do eixo, extrapolar a métrica da estrada, ela é natural. Eu ainda quero falar disso que Beckett escreveu, mas se a encenação cria outra situação, propõe outros jogos - outras ações - é natural que se tema perder o que já foi perdido. (O que fazer com os sapatos e com os chapéus?). O texto vai durar mais no processo do que devo supor agora. Ele é amarra, ele é obstáculo, entrave. Só o venceremos com muito esforço, só se formos obsessivamente desmedidos. Ele é o nosso principal vilão. E o que restar desse embate, bom, destes restos, enfim... É daí que nascerá uma peça.

Imagem | É o aspecto mais difícil de dialogar sobre. Não estudei muito sobre, não sei para onde ir. Mas recentemente Giorgio Agambem estabelece em seu PROFANATIONS, uma relação entre desejo e imagem. Bom, o cara conseguiu juntar estes dois nomes numa relação íntima e que tem tudo a ver com esta montagem. Em breve discorro mais sobre. O que posso dizer apenas é que a imagem é artifício primeiro para anular a espera. A imagem é satisfação primeira dos desejos. A imaginação. Humm... Bem intragável ainda, eu sei. Sigamos...

FOTOGRAFIA. FOTOGRAMA. REQUIEM. MEGA-HAIR. MULHERES. POP. DUCHAMP. QUARTA PAREDE. DERRUBAR. QUEBRAR. CAIR. OLHAR. ESPELHO. ALL THE SINGLE LADIES...
   

sábado, 30 de janeiro de 2010

"A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo ou O grande vidro"

  
"Nenhuma história aparente. Nada é dito. Tudo está para ser construído. O sentido de Grande Vidro está na busca do sentido. Mas isto não significa que falta sentido à obra. Ela é uma espera pelo olhar que a habitará e que completa-se com a imagem do espectador. Mesmo que o sentido seja, simplesmente, olharmo-nos a olhar através de uma imagem incompreensível". (P.66/67)

A CENA, A PLATÉIA...
DOIS UNIVERSOS, MUITOS SENTIDOS
Por Antonio Guedes

Artigo publicado na revista FOLHETIM nº 1 em ABRIL de 1998.


A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo ou O grande vidro de Marcel Duchamp (1887-1955). Poderíamos fazer uma troca e ler da seguinte maneira:
 
"Nenhuma história aparente. Nada é dito. Tudo está para ser construído. O sentido de Esperando Godot está na busca do sentido. Mas isto não significa que falta sentido à obra. Ela é uma espera pelo olhar que a habitará e que completa-se com a imagem do espectador. Mesmo que o sentido seja, simplesmente, olharmo-nos a olhar através de uma imagem incompreensível".
                          

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Dos [possíveis] monólogos de Lucky.


Variações Meyerhold
(segunda versão)
de Eduardo Pavlovsky

MEYERHOLD

[...]

Atacaram-me a improvisação. É a arma mais potente da imaginação de um ator. A arma da revolução e a pesquisa criadora sem limites, caralho! Sem limites! Lênin e Trotsky prepararam a revolução com a construção de um imaginário. Isso era revolucionário. Eu digo que não há ator no mundo que seja bom se não pode improvisar, imaginar, sair do roteiro. Improvisar antes das apresentações. Não há! Mas o que eles sabem! O extraordinário ator Nekrasov, o grande Nekrasov, um dos maiores atores do mundo, lembro que em uma peça de Osinski que durava três atos lhe disse: "Vem, Nekrasov" - era um grande, um grande, com sua presença já enchia o palco -, "vem, Nekrasov". "Sim, sim, sim", me diz. "Nesta peça, Nekrasov, no último ato, sua mulher, Tatiana, vai lhe dizer: 'Ivan, vou eu ou vai você. Eu quero que você saia de casa, não mais você, porque estou apaixonada por Pedro'. E sabe o que você vai fazer? Pense bem, são vinte e cinco anos de casamento, quero ver sua cara, lembre-se de Stanislavski, caralho, nesse momento quero que sua cara caia, os músculos, assim, assim. Quero que todos os músculos caiam de dor, as pessoas têm que ver sua dor na expressão, nos músculos de cara, caralho! Você entende, Nekrasov? Tatiana fala e você: bram! A cara, tudo se afrouxa..." "Lá vou eu". Fui para a última fila porque era um cara estranho, incomum, ultrapassava o limite dos atores russos.

No último ato Tatiana lhe diz: "Ivan, você ou eu. eu quero que você vá embora, Ivan, porque estou apaixonada por Pedro, seu amigo íntimo". Então Nekrasov a olha assim, vira a cara e faz... (Enorme gargalhada, prolongada.) Termina a peça e eu: "Vem cá, Nekrasov, o que você fez? Que foi que eu disse? Quando Tatiana lhe dizia isso, os músculos da cara, como nos ensinou Stanislavski, têm que cair, por que você riu?". "Meyerhold, é que tinha tanta vontade de rir, tanta vontade! E seguindo sua escola, Meyerhold, não será, Meyerhold, que em cada separação já uma grande gargalhada de liberação? (Ri.) Desta me safei! (Ri.) Era muito inteligente, eu fiquei pensando, além disso, quando ia ver as apresentações sempre improvisava porque mudava o sentido de cada cena, como um jogo, mudava assim como num jogo de xadrez, mudava aqui, punha lá, era maravilhoso! Quando eu o dirigia não tinha expectativa do que este homem ia fazer, acostumado aos atores russos, aos grandes atores russos, que são tão diferentes. Nekrasov... (Sem pausa, olha para alguém do público e lhe diz:) Petrinski, meu dentista, você está aqui, como vai? Olha, depois da apresentação, por favor, vê se me faz uma ponte aqui, porque não aguento mais de dor. Aqui, tá vendo? (Mutação.) Eles me atacaram por isso! Fui atacado porque eu era capaz de interromper as cenas de Shakespeare, ou de Tchekov com um acontecimento. Também me atacaram de anticomunista, anticomunista porque falava com meu dentista! Mas eles eram assim, assim são...

[...]

Trecho de uma fala da peça acima citada.
              

Espelha.

 

Godot amava Godot que amava Godot
que amava Godot que amava Godot que amava Godot
que não amava ninguém.
Godot foi para os Estados Unidos, Godot para o convento,
Godot morreu de desastre, Godot ficou para tia,
Godot suicidou-se e Godot casou com Godot

que não tinha entrado na história.


A partir de Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.
 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Há espera


Dirigir uma peça de teatro é fazer curso intensivo de espera. Uma espera desmedida, a minha, por algo que transtorne o caminho e valide o seu percorrer. Pode ser um raio, uma pedra, algo que me faça doer. Pode ser o silêncio. Pode ser. Costumamos a nos servir de qualquer coisa para termos a impressão de que o caminho existe. Para termos a impressão, sim é verdade, de que isso tudo aqui disposto ainda existe.

sábado, 23 de janeiro de 2010

A espera

Diálogo entre uma mulher de 25 anos e um homem de 65 anos.

M: oi

H: oi

M: você está esperando?

H: estou. E você?

M: também.(pausa) Me sinto cansada e você?

H: não.

M: imaginava, por isso mesmo perguntei. Como você consegue?

H: não cansar?

M: sim

H: é só não pensar nisso

M: não consigo não pensar

H: e porque não consegue? é só querer, a gente pode tudo

M: não tenho tanta certeza disso, uma vez eu quis começar e consegui mas quando quis parar já não era possível

H: você está com câncer?

M: sim. Estou. E esse não tem cura é câncer na alma

H: eu também tive câncer na alma e me curei

M: não acredito em você

H: é bom acreditar porque é verdade

M: como você descobriu a cura?

H: descobri porque parei de esperar

M: mas você não está esperando?

H: a morte sim, mas a vida não.


Estamos aí


Quando leio sobre Beckett e sua desesperança e lucidez de que estamos todos preenchendo o tempo à espera da morte não tenho como pensar o quanto isso é verdadeiro, é real. Quando leio sobre o resgate de uma anciã de 84 anos que se encontrava soterrada há dez dias nos escombros do Haiti não tenho como pensar e questionar o porque dessa mulher continuar viva. Estamos aí porque estamos. Não existe justificativa para vida assim como nenhuma esperança para a morte. O que mais me intriga é que apezar de tudo, de absolutamente tudo continuamos nossa jornada do mesmo jeito há milhares de anos. Há milhares de anos somos os mesmos e continuaremos sendo os mesmos por mais milhares e milhares

Que justificativa você dá para sua vida?

Hoje quem mais tem me ensinado como viver são aqueles que não sabem porque vivem. Talvez nunca devessemos ter questionado o porque das coisas, isso não leva a nada, isso pouco importa. Estamos aí porque estamos e ponto.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

uma beleza trágica


"Há uma beleza trágica da condição humana que provém da possibilidade de fazer dela ficção, de aí encontrar material para a criação de uma obra coerente e brilhante. assim o teatro dá um sentido e uma beleza ao trágico da existência. uma beleza e um sentido que vêm do trágico mesmo da existência dilacerado, em que tudo pode acontecer."

JEAN PIERRE VERNANT. A tragédia entre dois mundos

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Beckettiando.

   
Estagnação total. Parece haver luto. Muito silêncio, como fosse o silêncio variado e nem sempre mudo. Pausa. Tento recomeçar. Pausa. Desespero-me por uns segundos. Lanço o livro sobre a cama. Como é difícil. Como é difícil fazer valer o desejo. As idéias, tudo é tão bom, tudo é tão impossível. Tão novo, tão limpo. Precisa ser rabiscado. O livro. Mas está tão calor, tão calor... Passo o dia inteiro tentando pensar. E quando chega a noite, quando eu poderia enfim trabalhar, as mãos e pernas e braços e todo o corpo doem pelo trabalho do dia. Dói o corpo por ter tentado se manter no decorrer das horas. Preciso de sombra. Mas as árvores estão cruas, nuas, estão vivas, mas lá fora. Que estranha sensação de finitude. Ao trabalho... com tudo isso (e mais um pouco)... E vou dormir outra vez... Certo de amanhã, eu vou conseguir... Como ontem, como agora...
   

sábado, 16 de janeiro de 2010

20 de abril de 1956...

Beckett's 'Waiting for Godot'

By BROOKS ATKINSON | Crítica publicada no THE NEW YORK TIMES | Tradução Diogo Liberano
Não esperem dessa coluna uma explicação para o ESPERANDO GODOT de Samuel Beckett, que foi apresentado no John Golden na última noite. É um mistério envolto em um enigma.

Mas você pode esperar ser testemunha do estranho poder que esse drama tem em transmitir a impressão de alguma melancolia verdadeira sobre a falta de esperança no destino da raça humana. Mr. Beckett é um escritor irlandês que viveu em Paris por anos e uma vez serviu como secretário de James Joyce.

Deste ESPERANDO GODOT não se tem um sentido simples, mas um aproveitamento da experiência do Mr. Beckett em dois mundos que dão conta de seu estilo e ponto de vista. O ponto de vista sugere Sartre - sombrio, escuro, enojado. O estilo sugere Joyce - pungente e fabuloso. Coloque os dois juntos e você terá alguma noção do árido desenho animado de Beckett sobre a história da humanidade.

Literalmente, a peça é composta por quatro personagens desajustados, um garoto inocente que aparece duas vezes com uma mensagem de Godot, uma árvore nua, um ou dois montículos de terra e o céu. Dois dos personagens estão esperando por Godot, que nunca chega. Dois deles são um senhor de terra e um escravo quebrado e choramingando preso ao final de uma corda.

ESPERANDO GODOT é uma alegoria escrita em um tom cruel e moderno, um frequentador assíduo de teatro visitará a encenação buscando pelo sentido. Parece bastante certo de que Godot está para Deus. Aqueles que estão passeando próximo à árvore seca esperam por salvação, que nunca vem.

O resto do simbolismo é mais evasivo. Mas não é uma pose. O drama de Beckett prenuncia - e não expressa - uma atitude através por sobre a experiênca humana sobre a Terra; o pathos, a crueldade, a camaradagem, a esperança, a corrupção, a imundice e exige saber da experiênci humana. A fé em Deus quase desapareceu por completo. Mas ainda resta uma ilusão da fé cintilando nas bordas do drama. É como se o Mr. Beckett visse pequenas razões para se agarrar à fé, sendo incapaz de abandoná-la inteiramente.

Enquanto o drama é montado, o diretor e os atores interpretam a peça como se entendessem cada uma de suas linhas. A atuação de Herbert Berghof é vitoriosa em todos os aspectos. E Bert Lahr nunca havia dado uma interpretação tão gloriosa quanto a de seu maltrapilho Gogo, que parece estar pronto para todos os tropeços, como seres humanos perplexos que continuando existindo sem sabe seu motivo.

Apesar de ESPERANDO GODOT ser um drama loquaz, o Sr. Lahr é um ator com tradição na pantomima que possui uma série de maneiras para se circular e fazer caretas a fim de tornar a história mais interessante e teatral, e nos tocar, também. Sua longa experiência como um charlatão o preparou para representar de forma eloquentemente trágica a comédia de uma das almas perdidas desta Terra.

Os outros atores são excelentes também. E. G. Marshall como o companheiro andarilho cuja menta é um pouco mais coerente; Kurt Kasznar como um magistral e egoísta cheio de poder e sucesso; Alvin Epstein  como o escravo que possui uma polêmica sátira para nos entregar de forma mecânica; Luchino Solito De Solis como o desarmado menino - completa o elenco que dá ao difuso drama uma consistente interpretação.

Apesar de ESPERANDO GODOT ser um espanto, como expressaria o Rei de Sião, Mr. Beckett não é um charlatão. Ele tem sentimentos fortes sobre a degradação da humanidade e deu vazão a eles copiosamente. ESPERANDO GODOT é todo sentimento. Talvez seja por isso que é intrigante e convincente, ao mesmo tempo. O público de teatro pode até passar pelo espetáculo, mas não poderá ignorá-lo.


   


quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

"Why Waiting for Godot?" - Tradução 2/3

   
Traffic of our stage: Why Waiting for Godot?
The Massachusetts Review; Amherst; Autumn 1999; Normand Berlin
Tradução: Diogo Liberano

Um mundo de "talvez" é particularmente inquietante para alguns diretores e atores. Então, meticulosamente cuidadosas são as rubricas de Beckett que evem ser consideradas como partes do seu texto. Prestar atenção à elas, ao que parece, tira a independência dos diretores que desejam ir por seus próprios caminhos. (Alan Schneider foi admiravelmente fiel às instruções de Beckett através dos anos, por quem Beckett foi muito sensível.) Normalmente, os diretores que querem esclarecer, explicar, acabam reduzindo a eficácia do jogo. Aqueles atores que devem "conhecer" os personagens que desempenham também estão inquietos com Beckett. Ralph Richardson, selecionado para interpretar Estragon em uma produção britânica, pessoalmente fez perguntas específicas a Beckett a partir de uma lista que elaborou. Beckett, em seguida, ouviu e apenas disse: "Eu não posso responder a todas as suas perguntas." Assim, Richardson recebeu um certo puxão de tapete, em suas próprias palavras, "a maior peça da minha vida." Como Richardson teria interpretado Gogo, em oposição à proposta de Didi feita por Alec Guinness, é em si uma questão intrigante. Ainda mais intrigante é o par de atores que Beckett certa vez propôs: Buster Keaton como Didi e Marlon Brando como Gogo. O pensamento em plena violência.

A justaposição de Beckett para a comédia e a tragédia faz o gênero de Godot tão incerto como tudo mais na peça. Para a sua tradução em inglês Beckett definiu sua própria peça como “tragicomédia”, o que é um tanto surpreendente, pois ele desconfiava classificações. "O perigo", escreveu num ensaio sobre Joyce, "está na limpeza da identificação." Ele rejeitou as críticas daquilo que ordenadamente classifica e define ou tenta explicar o inexplicável. Ainda assim, o rótulo tragicomédia " apresenta um gráfico beckettiano, a sua qualidade paradoxal é incorporada à palavra. Parece que Beckett quer ter a certeza que a peça não é apresentada em qualquer gênero, comédia ou tragédia. Beckett quer os dois, juntos, mas isto não impediu que os críticos dessem ênfase na comédia sobre a tragédia, ou vice-versa. A minha opinião inclina Godot mais para a tragédia, porque acho que o caminho da peça, mesmo com todas as rotinas cômicas, e apesar de todas as circularidades e impasses, acaba se equilibrando em direção ao escuro, em direção à morte. Os personagens não estão lá ainda, mas Pozzo e Lucky estão se movendo “nesse” sentido e, embora Didi e Gogo estejam congelados eles parecem muito perto do abismo. E eu acho que a peça contém dois discursos, além do momento de derramamento de palavras do Lucky que se encontra na lida com "a indiferença do céu" e "o encolhimento do homem" e "petrificação", segundo a divisão em três partes de Beckett, que parece cristalizar a atitude de Beckett diante da vida, uma atitude que eu chamaria de trágica. 

Aqui estão as últimas palavras do Pozzo cego antes de sair do palco no fim do segundo ato:

Você ainda não me atormentou com o seu tempo maldito! É abominável! Quando! Quando! Um dia, isso não é suficiente para você, um dia ele ficou mudo, um dia eu fiquei cego, um dia vamos ficar surdos, um dia nasceremos, um dia morreremos, no mesmo dia, no mesmo segundo, isso não é suficiente para você? (Sereno.) Elas dão à luz montadas sobre uma sepultura, a luz brilha um instante, então .... é noite outra vez! 

Para Pozzo tudo está acontecendo em um instante, no mesmo dia, no mesmo segundo. Uma jornada diária curta rumo à noite. 

Vladimir, aproximando-se do final da peça, parece ter chegado a uma nova consciência a partir do eco das palavras ditas por Pozzo enquanto Gogo dorme: 

Montado sobre um túmulo e parto difícil. Na cova, demoradamente, o coveiro aplica o fórceps. Nós temos tempo para envelhecer. O ar está cheio de nossos gritos. (Ele escuta.) Mas o hábito é um grande sossego. (Ele olha novamente para Estragon.) A mim também alguém está dizendo, Ele está dormindo, ele não sabe nada, deixe-o  dormir. (Pausa.) Eu não posso ir em frente. (Pausa.) O que eu disse? 

Morte e nascimento. Coveiro e obstetra. Pá e fórceps. Túmulo e útero. Gritos do homem atormentado e de bebês inocentes. Observadores e observados. Aqueles acordados e aqueles dormindo. Uma série de saldos e antíteses, mas a ênfase está na morte. A jornada de Didi é mais lenta que a de Pozzo, a palavra fundamental é "demoradamente”. Ele está numa longa jornada diária em direção à noite e é tão doloroso que ele diz, "Eu não posso ir em frente!" Em seguida, uma pausa. Um momento de reflexão. Seguido por "O que eu disse?" Por aqui também o hábito é um grande corruptor e a espera vai continuar. Naturalmente, a minha afirmação de que a peça é mais trágica do que cômico cai na armadilha da "clareza da identificação." Beckett iria demitir-me com a palavra que, em Godot, se torna o último insulto, "Crítico!". 


Em Godot, com seus silêncios e vazio e contrapesos, Beckett foi brilhantemente capturando o temperamento dos tempos. A incerteza radical informa o século 20, a sensação de que perdemos nossa amarrações, que estamos sem eixo, despropositados, sem deus, que temos uma necessidade de algum tipo de salvação mesmo quando parece que esta nunca virá. Como Didi e Gogo estamos à espera de Godot, seja ele quem for, seja o que Godot represente, e não há "nada a ser feito." A condição do homem é esperar, e a atividade do homem é passar o tempo enquanto espera. Não se admira que Godot, de modo incompreensível para muitos, quando apareceu pela primeira vez, pareceu absolutamente claro para os presos de San Quentin em uma apresentação muito discutida da peça em 1957. Eles imediatamente se identificaram com os seus companheiros de prisão, Didi e Gogo, ligando à sua condição de preencher o tempo enquanto esperam. 


Godot tem a pressão da nossa história aterrorizante por trás dele. Quando uma peça escrita em nossos tempos apresenta um homem desacomodado, nu, impotente, à espera, juntamente com outra pessoa, mas ainda intensamente sozinha, falando e falando, para evitar a sensação palpável, talvez infernal, do silêncio, assim, como podemos não pensar nos chamados campos de concentração? Uma pesquisa que elegeu Godot como a peça mais importante do nosso século deve ter sido não somente porque a peça "mudou o teatro", como o Times colocou, mas também por revelar assustadoramente as mais escuras sombras de nossa era, o mais asqueroso exemplo deste nosso tempo de vulnerabilidade lamentável do homem e de sua crueldade inexplicável. Como não pensar nas populações nômades quando assistimos Lucky carregando sua mala e andando devagar, cabeça baixa, em uma paisagem desolada? O volume e a corpulência de Pozzo, chicote na mão, reforça a imagem de uma raça superior perseguindo suas vítimas indefesas. Nesse contexto, como pensar nas botas, pilhas de botas e sapatos, e não se lembrar dos campos de extermínio nazistas, onde não se podia fazer nada além de esperar? Beckett, como descobrimos em sua biografia, lamentou o anti-semitismo alemão, ficou horrorizado pela filmagem das atrocidades nazistas, trabalhou para o resistência francesa, perdeu seu grande amigo Alfred Perón, que morreu em conseqüência de seu tratamento pelos alemães no campo de concentração de Mauthausen, e originalmente deu a Estragon o nome de Levy. 


Em virtude de a peça ser tão depojada, tão elementar, acaba recebendo todos os tipos de interpretação social, política e religiosa, com o próprio Beckett sendo colocado em diferentes escolas de pensamento, em diferentes movimentos e "ismos". As tentativas de classificá-lo não tiveram êxito, mas o desejo de fazer isso é natural quando nos deparamos com um escritor cuja arte minimalista atinge a realidade. "Menos" nos obriga a olhar para "mais", e a necessidade de falar sobre Beckett Godot e resultou em uma constante publicação de livros e artigos. 


A importância da peça pode ser medida pelo seu impacto, tanto como influência e inspiração, em dramaturgos modernos. Assistir à peça foi uma experiência libertadora para alguns dos nossos melhores dramaturgos contemporâneos. Beckett os forçou a reexaminar as regras da dramaturgia, a questão das exigências convencionais de enredo e personagem e diálogo, a experiência com o tempo e espaço, para ver as possibilidades de mistura de comédia e tragédia. É o que diz Harold Pinter, que enviou o seu próprio manuscrito concluído a Beckett e sempre recebeu atenção calorosa de Beckett: "Ele foi uma inspiração para todos os escritores e certamente foi para mim. Ele era um homem de imensa graça como amigo e como escritor. Ele não admite qualquer fronteira na sua escrita. Ele foi destemido em sua vida e em sua arte”. Peças de Pinter são muito diferentes de Godot em suas configurações inglesas e realistas, no seu interesse psicológico, na qualidade de ameaça, pois elas são mais social do que metafísica. Ainda assim, os ecos de Beckett são claramente ouvida em The Dumb Waiter, The Birthday Party, The Caretaker e The Homecoming, especialmente no diálogo e silêncios, e na maneira de produção de um público para preencher os espaços vazios de significado. Também admirador e seguidor de Beckett é Tom Stoppard, que afirmou que Godot "liberou algo para que qualquer um pudesse escrever alguma peça". Embora ele pareça usar Beckett sempre que pode, abertamente e com entusiasmo, suas próprias peças mantem uma originalidade distinta. Um exemplo é com Rosencrantz e Guildenstern Are Dead, a peça que permite que os personagens menores de Shakespeare possam se tornar os Didi e Gogo de Stoppard, perplexos, impotentes, com perguntas não respondidas, presos em um mundo de Hamlet e passando por rotinas cômicas até que se pronunciarem como "mortos". A homenagem mais direta de Stoppard a Beckett vem com uma deliciosa paródia do discurso de morte/nascimento de Didi, anteriormente citado: "Junto ao túmulo do empresário tira o chapéu e impregna o mais bonito luto. Wham, bam, thank you Sam". Esta é a confirmação espirituosa de Stoppard, da importância de Beckett à sua própria produção criativa. Sem dúvidas que os ingleses Pinter e Stoppard são os filhos de Sam. Assim também são os norte-americanos Edward Albee, que proclamou: "Se um é influenciado pelo dramaturgo Samuel Beckett, então ele é um idiota e irresponsável". E David Mamet e Sam Shepard. Assim também é o Sul Africano Athol Fugard, que dirigiu Godot com um elenco de negros em 1962, e disse a seus atores que “Vladimir e Estragon... estavam em Sharpeville e foram os primeiros em Auschwitz. Escolha o seu horror. Eles sabem tudo sobre isso". A bela peça de Fugard, Boesman e Lena, é beckettiana em todos os aspectos, excepto em sua "mensagem" e nos seus efeitos. Vaclav Havel foi considerada por Beckett como "a influência decisiva sobre a minha escrita", como fez inúmeras menos conhecidos dramaturgos contemporâneos que têm absorvido Beckett em suas próprias maneiras.



Da noção de encontro


Para que o espectador seja estimulado a uma auto-análise, quando confrontado com o ator, deve existir algo em comum a ligá-los, algo que possa ser desmanchado com um gesto, ou mantido com adoração. Portanto, o teatro deve atacar o que se chama de complexos coletivos da sociedade, o núcleo do subconsciente coletivo (...), aqueles mitos (...) que são (...) herdados (...) (1).

A citação acima chama atenção para a noção de encontro, em primeira instância. Por encontro, entendo esse link que se estabelece entre ator e espectador e que se chama, no final das contas, teatro. É a partir desse encontro, dessas mãos que se entrelaçam que se obtém o que posso entender hoje por teatro. Não é um encontro isento de qualidades. É um encontro possível. O que virá a seguir varia, é constante, é transtorno, é pulsante. Pode ser muito e pode ser pouco. Pode não ser, pode ser eternamente. Pode sair do lugar ou não ou estar num entre incapaz de se classificar. Isso tudo, enfim, é o teatro que pode ser mesmo um infinito. Mas que, para isso, precisa primeiro encontrar.
Ou seja, não tem como eu ser outra coisa se eu já excluo desde o início a possibilidade sua de relação comigo. Mais: não tem como eu ser alguma coisa se eu excluo o seu olhar, o contato contigo, pois é justamente neste lugar que se opera a minha existência. Eu dependo de você para existir. Não quer dizer que serei vassalo de ti, não quer dizer isso, eu posso te bater, te odiar, te fazer mudar, romper com você, te dominar, mas parto sempre de um princípio, o de que nos amamos – a noção de que nos encontramos lá no início.
Em outras linhas, preciso primeiro te receber. De peito aberto, de espaço aberto. Receber. Depois, sádico como acredito o ser, vou moendo o tapete e te fazendo escorregar por dentro de certas engrenagens que você talvez não queira percorrer, mas que já tendo se encontrado comigo lá nos princípios, bom – eu entendo – fica difícil você se abster.
O que eu fiz? Furei sei olho? Não, eu puxei seu tapete. Assumidamente. Deixei-te em suspensão. Partimos, então, de um tapete uno. De um mesmo chão. Mas eu tinjo ele de outra cor e você acha mesmo que o que mudou foi o chão. Eu lido com cores com formas e semblantes, com superfícies que se confundem e te tornam inoperante, ou – desejo eu – tornam-te ser capaz de operar em si a gerência dos horrores e afetos que fazem de nós – seres – sermos humanos.
Sem o encontro, não pode haver confronto. Primeiro a gente se ama, depois se mata. Primeiro união, depois desenlace. Primeiro há construção, depois sua quebra. É o processo natural, leia-se, irreversível?
Não. Talvez em se falando do teatro as coisas percam autonomia, percam poder, percam posse, ganhem autofagia. As coisas se digerem elas por elas mesmas e o dia nasce potente de outra coisa a qual sequer foi dado um nome. O nome importa? O nome entorta e nos torna vassalos de uma perfeição que só se encontra mesmo nos dicionários.

(1) GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. P.36.

Fonte: http://pdpdd.blogspot.com/2009/09/da-nocao-de-encontro.html
      

Questionar-te

     

A complexidade do assunto por vezes me distancia. Não para melhor analisar o processo, mas por medo, de ser tragado pela impossibilidade de compreensão. Tem a ver com isso lidar/falar/fazer a tal arte. O que ela é o que pode ser tudo parece pouco diante de sua inata complexidão.

Hoje eu pensei um pouco sobre o que quero fazer com ela em você. Sobre qual o sentido externado quando eu jogo diante de seus olhos uma série de movimentos e verbos. Nada me pareceu muito claro, porém, sustento ainda a percepção do sincero. O que desejo causar em ti não pode vir por outros meios que não sejam estes - modos - todos sinceros.
Todos modos cavalgados através da pele.
A forma, o sentido, o conteúdo, as camadas. Estou tentando o incapaz. Estou buscando o impossível. A arte tem, aos poucos, esse gosto do inexprimível. E por isso tudo é tão difícil pois o desejo nunca é completo. O desejo nunca é saciado ele sempre pressupõe na frente um resto. O resto, do contrário, faz parte dessa equação. Resto aqui não é lixo, lixo aqui é pura ostentação, do retirar da mesa as migalhas restantes e convertê-las em estrelas, mesmo num céu inoperante.

Confusão de valores, extravazamento. Essa palavra que não acaba, que em si mesma se abala, extravazamento. Uma profusão sem fim de estupros: arte deve assim ser. Não é seguro. Toca na anã imensidão dos meus desejos. Toca e subverte todo meu arsenal de gracejos e eu nunca sou amante o suficiente para através dela te falar de amor.

Corpo torce e retorce. Mas não vejo. Numa busca infelizmente já não encontrada, fazer arte é tombar o próprio lanche no meio do recreio. E ver nas outras crianças o lanche ser comido. Ver no vizinho a impossibilidade sua se concretizando, se discernindo. O complexo está em você.

Em você é sempre mais difícil. Em você é sempre do impossível ao infinito. Os termos nunca definem, em arte todos os termos extrapolam conceitos e transformam a vida em circo-insegurança em corda não mais que unicamente corda-bamba.

Fonte: http://pdpdd.blogspot.com/2009/09/questionar-te.html
  

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

"Vozes e Silêncios na fotografia de Jorge Molder"

   
À Espera do Mundo
Vozes e Silêncios na fotografia de Jorge Molder
Por Margarida Gil dos Reis
“Encontramos sempre qualquer coisa
Para nos dar a impressão de que existimos, hã Didi?”
Samuel Beckett
1.

A actual reprodução excessiva de imagens produz-nos uma carência incurável, um «não querer ver mais». Esse acto de descoberta que era o «ver» tornou-se desnecessário porque tudo está retido no nosso espaço que deixou de ser privado para ser também do Outro, do mundo. No entanto, a fotografia mantém uma força que lhe permite materializar aquilo que designamos por o efeito do real. Uma das questões mais globalmente colocadas por esta arte é esta: como representar e simultaneamente dizer o Real? Se considerarmos que o espaço entre uma imagem e o que, através da fotografia, se tornou imagem é, sobretudo, a prova de uma presença, então, mais do que representar uma imagem, uma fotografia é também uma «testemunha» que hasteia a bandeira da unicidade, isto é, foi aquele fotógrafo, naquele preciso momento que disparou o obturador. O que retém a fotografia pela fixação? Detentora do seu próprio tempo e da sua própria matéria, a fotografia dá sentido a esse movimento perdido dos instantes, materializando o real, bem como o universo da imaginação.

Talvez nunca possamos deixar de caracterizar a fotografia como a arte que tenta captar «o transitório, fugitivo e contingente», termos usados por Baudelaire para definir o conceito de modernidade. ‘Representar’ o real, exercer a capacidade de fixar as coisas, não pode ser indissociável do acto de ‘dizer’ o real, contribuindo para o aparecimento de novas significações e novos sentidos. Uma imagem fotográfica pode ser detentora de vários códigos que pedem uma descodificação, como se de uma cadeia de referências literárias intertextuais se tratasse. Atestando que um dado objecto foi real, é certo que a fotografia o autentifica, certificando a sua presença, mas dá-nos também a realidade das coisas no seu tempo passado porque “na Fotografia não posso nunca negar que ‘a coisa esteve lá’. Há uma dupla posição conjunta: de realidade e de passado. [...] É a Referência, que é a ordem fundadora da Fotografia.” (Barthes, 2001: 107).

‘Representar’ o real faz-nos reconhecer de imediato a objectividade e autenticidade do material documental fotográfico, mas ‘dizer’ o real, implicando uma projecção do sujeito no processo de descodificação das coisas, suscita-nos uma questão: qual é lugar do sujeito no mundo e face aos outros? Esta projecção do eu é, para Philipe Lejeune (cf. Je est un autre, Paris, Seuil, 1980), reflexo de uma tendência para o particular: “E para muitos a vivência da intimidade é uma garantia de autenticidade num tempo em que a vida pública se tornou uma espécie de ‘teatro do mundo’” (Rocha, 1992: 19).

2.

As imagens surgem então como fragmentos numa cultura que faz por impor as suas representações sobre estigmas como o do silêncio. Desde a década de 20, na Europa, com a fotomontagem e a fotocolagem, lembrando, por exemplo, John Heartfield ou Raul Hausmann, passando por explorações ópticas, como é o caso de Man Ray, ate à revolução tecnológica pós-moderna, em que a câmara escura dá lugar a uma base electrónica, retiramos uma característica que continua a ser comum: o (auto)questionamento da fotografia e do sujeito (auto)retratado. O fotógrafo ganha assim o estatuto de artista singular de uma arte que continua a viver com a ambiguidade da sua dupla função: ministradora de realidades e veículo de acesso a um espaço de intimidades. Não podemos pois deixar de concordar com François Soulages (Soulages, 1998: [s.p.]) quando reconhece na obra do fotógrafo uma estrutura ‘triangular’ da arte, estrutura essa aliás já avançada por Blanchot: o criador, a obra e o receptor. Deste modo, a partir destes três eixos, podemos distinguir duas formas de olhar para o mundo: o modo como as coisas são vistas e o modo como nos são dadas a ver.

Trabalhada entre o preto e o branco, associando a visualidade característica do retrato a uma quase modalidade narrativa, a obra de Jorge Molder é, sobretudo, uma questionação das coisas. Artista-actor, na medida em que através da fotografia o sujeito que se representa torna-se outro, Jorge Molder retrata toda uma condição humana, inevitavelmente ligada aos desígnios do tempo. Não pondo qualquer tipo de obstáculos à sua visibilidade, o artista permite-nos distinguir na sua obra duas formas de olhar para o mundo: a forma como as coisas são vistas e o modo como nos são dadas a ver. É justamente nos processos de ‘representar’ e ‘dizer’ que reconhecemos várias manifestações do sujeito: a interrogação, ao olhar-se ao espelho; o despertar, quando esfrega os olhos; a procura, quando lê um jornal sem nada impresso; a queda de um rosto que progressivamente se vai metamorfoseando; a espera de quem (se) representa como a imagem duplicada das nossas inquietações. Vozes e silêncios que perpassam as fotografias a preto e branco, ‘polaroids’ ou chapas de zinco impressas em positivo. Assim, um dos aspectos a salientar na fotografia de Jorge Molder, é o facto de ela existir não só por aquilo que é, mas também por significar enquanto parte integrante de uma obra que, na sua serialidade, é aberta e interminável. Talvez por isso, ao longo do percurso deste artista, que não coloca qualquer tipo de obstáculos à sua visibilidade, encontremos topoi que se mantêm desde os primeiros trabalhos até às fotografias mais recentes.

À semelhança de À Espera de Godot de Samuel Beckett, também a voz, na obra de Jorge Molder, sucumbe, muitas vezes, ao silêncio, outra forma também perfeita de comunicar e dizer o quão os objectos marcam com a sua presença uma realidade histórica:

“ESTRAGON – [...] Vamos embora.
VLADIMIR – Não podemos.
ESTRAGON – Porquê?
VLADIMIR – Estamos à espera do Godot.
ESTRAGON – (Sem esperança) Ah, pois é. (Pausa) Tens a certeza que era aqui?
VLADIMIR – O quê?
ESTRAGON – Que tínhamos de esperar?
VLADIMIR – Ele disse ao pé da árvore. (Olham para a árvore.) Estás a ver outra?
ESTRAGON – Que árvore é que é?
VLADIMIR – Não sei. Um salgueiro chorão. [...]
ESTRAGON – Ele já cá devia estar.
VLADIMIR – Ele não deu a certeza que vinha.
ESTRAGON – E se não vier?
VLADIMIR – Voltamos amanhã.
ESTRAGON – E depois de amanhã.
VLADIMIR – Talvez.
ESTRAGON – E por aí fora.” (Beckett, 2000: 21-22)

Na série «Waiters» (1981-82), todos os objectos parecem esperar por algo – cadeiras ou mesas partilham um mesmo silêncio nostálgico. Veja-se ainda, em 1977, «Vilarinho das Furnas (uma encenação), paisagens com água, casas e um trailler», a sensação de perda que resulta a partir de uma instalação da artista plástica Ana Hatherly a propósito de uma aldeia submersa pelas águas de uma barragem. Ambos os trabalhos, à semelhança de outros que lhes são posteriores, falam da divisão das coisas, de um mundo que surge muitas vezes fracturado, e do qual só temos acesso aos seus vestígios. Se em «Waiters» vemos apenas os contornos das coisas, as mesmas sombras da caverna de Platão, e em «Cabinet d’Amateur» (1987) a presença das coisas ou do sujeito revela-se justamente pelo que está ausente. Sem qualquer interesse autobiográfico, Jorge Molder interroga-se sobre a questão da identidade, numa quase (auto)esteticização, como podemos observar na série «Auto-retrato» (1983-1987). Tal como na obra de Beckett, tenta-se falar sobretudo do homem, numa afirmação existencial, quer do criador, quer do referente: “Aqueles gritos de socorro que ainda tilintam nos nossos ouvidos, foram dirigidos a toda a humanidade! Mas neste local, neste momento, nós somos toda a humanidade, quer queiramos quer não.” (Beckett, 2000: 105). A obra de Jorge Molder desperta-nos a atenção para o que é diferente, para o próprio conceito de «diferença», fomentando a ‘espera’ como mais um processo de aprendizagem. Assente em códigos culturais que nos desafiam à descodificação, a fotografia de Jorge Molder tem uma linguagem própria, passível de ser interrogada e ‘lida’. A questionação parece-nos ser talvez uma das características mais marcantes deste artista, pois aquilo que se representa é, sobretudo, a condição mais universal do homem: o Eu como máscara de si próprio.


À semelhança das personagens de Beckett, o observador das fotografias de Molder aprende a valorizar a espera, como se de um percurso cíclico submetido aos desígnios do tempo se tratasse:

“VLADIMIR – Já não estamos sozinhos à espera da noite, a espera do Godot, à espera de... à espera. Lutámos durante a tarde inteira sem qualquer ajuda. Agora acabou. Já é amanhã.
POZZO – Socorro!
VLADIMIR – O tempo volta a correr. O Sol vai pôr-se, a lua vai nascer, e nós vamos embora... daqui.” (Beckett, 2000: 103)

Em «The Secret Agent», o sujeito assume-se como agente, isto é, aquele que observa os pormenores, os indícios, os vestígios das coisas para, em seguida, construir uma nova ficção. Já na série «Nox» assistimos a um percurso cíclico de adormecimento e despertar. Viaja-se entre uma realidade imaginada e a percepção da existência das coisas; viaja-se entre o Outro e a afirmação mas a impossível sobreposição do Eu, pois sabe-se que tem de se esperar sempre, mesmo em silêncio, para poder dizer e, sobretudo, comunicar. Podemos de facto observar o sujeito em várias situações: quando usa o espelho, sentindo-se Eu mas vendo-se Outro; quando se disfarça, metamorfoseando-se; quando simplesmente fecha os olhos como se estes tivessem sido suturados. A violência, a consciência da fugacidade do tempo, o silêncio de um corpo manipulado ao serviço de algo estão bem presentes em «Anatomia & Boxe». O corpo, que se metamorfoseia, é inserido num espaço sugerido pelo artista – o ringue de boxe. Nesse espaço de confronto, o sujeito encena-se e vive, em espera e em silêncio, a nostalgia de cristalizar momentos porque, citando Beckett, “Estamos à espera do Godot. [...] Não podemos fazer nada” (Beckett, 2000: 91). Na fotografia de Jorge Molder, a suspensão, o silêncio e a fixação das coisas fazem com que os objectos e o próprio sujeito assumam uma postura espectante, semelhante à terrível espera na obra de Beckett.

Detentora do sue próprio tempo, pois retém pela fixação, e da sua própria matéria, a fotografia de Jorge Molder tenta, por um lado, dar sentido a esses instantes que encerram em si, de forma mais ou menos escondida, o absoluto. Deste modo, a fotografia não só confirma a existência real das coisas, autentificando o real, mas também suspende o próprio tempo, mesmo que se esteja “sempre à espera do último minuto” (Beckett, 2000: 17).

Falar da fotografia de Jorge Molder, exige-nos ainda passar pela questão do uso do auto-retrato que, automaticamente, nos faz também querer ver a componente ficcional da sua obra. Nesses auto-retratos existe sempre um distanciamento do sujeito consigo próprio, melhor, do sujeito com o seu duplo. Nessa quase condição intervalar, na qual o sujeito espera, «desvanece, cai, desfalece, finge» (Sardo, 1999), fala-se da divisão das coisas, de um mundo que muitas vezes surge fracturado mas que é re-organizado ou reabilitado pela fotografia – esse jogo com um mundo ideológico que con-forma o real.

3.

A fotografia reproduz, num movimento até ao infinito, um instante, possibilitando a repetição do que é existencialmente irrepetível. Informa, representa, surpreende, dá significação, provoca desejo. O «saber fotográfico», referido por Barthes (Barthes, 2001), encontra-se directamente dependente de três emoções: fazer, experimentar, olhar. Uma fotografia representa então, de algum modo, o momento de passagem do sujeito à categoria de objecto. E é nesta passagem que a meta do fotógrafo é a de lutar para que a fotografia seja mais do que um espectro, para que nela a morte e o tempo não se sobreponham à vida. A fotografia dá-nos então um novo código visual, desenvolvendo uma quase ‘ética da visão’, uma ‘gramática do olhar’, na medida em que chama a nossa atenção para o que vale a pena olhar, oferecendo-nos aquilo que Susan Sontag define como uma «antologia de imagens» (Sontag, 1977). O poder da fotografia de Jorge Molder é justamente o fazer-nos pensar, o contagiar-nos com essa suspensão dos instantes, em suma, ensinar-nos a esperar e a conviver com alguns dos medos que nos são comuns, entre eles a ausência, o silêncio. Como bem observou Roland Barthes, “no fundo, a Fotografia é subversiva não quando assusta, perturba ou até estigmatiza, mas quando é pensativa.” (Barthes, 2001: 61). Tal como em À Espera de Godot de Beckett, na fotografia de Jorge Molder há também uma desocultação da vida mais quotidiana, especulada e interrogada. A representação é então a afirmação de uma presença no mundo, não só enquanto perspectiva sobre esse mundo, mas também como uma forma de recriação e de reestruturação. Concordamos com a dupla função da fotografia avançada por Susan Sontag: se, por um lado, a fotografia cumpre a função de «espectáculo», por outro lado, ela é também atenta e «vigilante» relativamente ao mundo. Quase assente num paradoxo, a fotografia produz um efeito de real, mas também fixa e eterniza esteticamente esse real captado. Deste modo, fixar as coisas no espaço e problematizá-las no tempo é formar poeticamente as coisas: representar e dizer o mundo do fotógrafo ou do escritor, que é também o nosso:

“VLADIMIR – [...] O que é que nós estamos aqui a fazer, eis a questão. E felizmente temos o privilégio de, por acaso, saber a resposta. É verdade, no meio desta imensa confusão apenas uma coisa é clara. Estamos à espera que o Godot venha.” (Beckett, 2000: 106).

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland, A Câmara Clara (trad. Manuela Torres), Lisboa, Edições 70, 2001;
BECKETT, Samuel, À espera de Godot (trad. José Maria Vieira Mendes), Lisboa, Cotovia, 2000;
ROCHA, Clara, Máscaras de Narciso – Estudos sobre a Literatura Autobiográfica em Portugal, Coimbra, Almedina, 1992;
SARDO, Delfim, “Desvanecer, cair, desfalecer, fingir”, Luxury Bound, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999;
SONTAG, Susan, On Photography, London, Penguin, 1977;
SOULAGES, François, “L’Oubli de Jorge Molder” in MOLDER, Jorge, L’Oubli, Musée de l’Elysée Lausanne, Maio de 1988.

Fontes: