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sábado, 2 de janeiro de 2010

Aleautoria



OU AUTORIA DO ALEATÓRIO.

Tem a ver com pôr em cena, em palavras, em gestos ações movimentos, formas que não foram previstas, conteúdos que surgiram, chegando de surpresa e nos surpreendendo, a princípio. A autoria do aleatório visa atingir novas chegadas. Visa oxigenar a mesma estrada. Estamos fazendo mais uma vez um mesmo igual caminho, no entanto, se brincarmos nele, lá na frente ele poderá ser algo mais obtuso, algo até escuso, belo e confuso, mais até poético, algo até mais trágico, comum, seguro. Ser mosaico de ruídos.

Percorrer outros caminhos. Inventar o cotidiano pelo fazer, como tão bem desenvolve o historiador Michel de Certeau em A Invenção do Cotidiano. Ir pelas mesmas ruas até cair dentro de um beco nunca visto. Olhar para o inusitado e o deitar em nosso colo, aceitando de antemão o seu risco. O seu fascínio, sua provável perdição. Não desprezar, aceitar de antemão. Aceitar os infortúnios, neles se esbaldar. Fazer arte, ora, deve ser isso. Queremos, nós o público, ver como você faz aquilo. Nem tanto mais ouvir sua ladainha, nem tanto mais saber se você ri ou se chora. Eu quero ver o seu como, o seu desenrolar. Nós ali sentados queremos ver se você é capaz de administrar seus passos sem tropeçar. Mas! Se por acaso tombares, queremos que seja sincero conosco e diga, Gente, eu tombei. Vocês podem rir, eu não vou chorar. E chorar logo em seguida, porque se fez necessário o choro e ninguém dele poderia suspeitar, porque é mesmo imprevisível o teor da próxima esquina.

O teor da próxima esquina, da próxima cena, próxima página, é sempre algo incapaz de prever, de dizer, de desenhar, de assegurar a você. Por isso aleautorizamos o que vier. Pelo diferente nós tentaremos assegurar não aquilo que é, mas aquilo que possa ser.

Autoria. Do Ator, do Autor. Atorial. Autoria em todo o tempo, por isso também atemporal. O tempo está fora do esquema. Autoria do aleatório, aleautoria, algo quase marginal. Acaso. Capaz de se gerar pela gota da chuva que pingou no seu chapéu e que você sequer percebeu. E tudo seguiu e outra dramaturgia disso nasceu.

É como se selecionássemos o caminho da chuva. Nossa dramaturgia é o caminho desta gota que acabou de cair. Que caiu no casaco da moça, que entrou o prédio correndo. Casaco de plástico nele a gota desliza ao sabor do vento. A moça pede licença, as pessoas tumultuando o corredor não dispersam, ela empurra. Nisso a gota esbarra no casaco felpudo escuro de um senhor. A moça então segue seguindo. A gota, porém, agora partida fica e vai indo: parte vertiginosa no casaco plástico da menina e parte adentrando o corpo do senhor, encontrando o suor, sua doença, seu calor já tão esfriado. A gota lá na frente chega dentro de um banheiro. A moça retira o casaco e o sacode. Foi parar na parede. Ali agora vai escorrendo, vendo os rostos, depois os pescoços. Depois segue vendo seios colos sexos pernas e por fim, uma bota, da moça outra que a parede toca, metendo a galocha onde deveria apenas ser parede. A gota ali na parede vai seguindo, pisando agora colada à galocha, chãos novos, se perdendo aos poucos pelo caminho. Mas inda persistente no senhor, pois tendo sua pele conhecido, a gota agora vai sentindo o tempo nele ali armazenado... Confunde-se com seu suor, fica maior ao ganhar outro destino...

Poderíamos seguir as gotas e nos surpreender com o seu acaso impregnado. Poderíamos seguir qualquer coisa que não o nosso raciocínio velado. Por isso então vamos seguindo, improvisando ao vento, tentando dizer o mesmo só que noutro tempo, por outra língua. Vamos deixar o improvável – a vida – nos avassalar. Vamos abrir os poros e deixar ela nos ocupar.

No qual há um pouco sobre Michel de Certeau e Zygmunt Bauman e sua visão da modernidade, marcada pela ação e estratégias humanas de re-existência, de re-invenção.