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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Para Flávia,



Rio de Janeiro, 24 de junho de 2010.

Flávia, leia com atenção. Estou lhe informando por meio deste papel qual é o seu papel neste ESPERANDO GODOT. Você é Vladimir. E isso não é uma pergunta, não é questão, não é um dado contra o qual você pode ou deve levantar questões. É antes um convite, para viver aquilo que já está sendo vivido desde o início. Você que está comigo faz tanto tempo, é normal que me queira ter por perto, ali em cena, já que estamos assim – tão próximos – desde o início. Pois lhe digo também que estou ali. E aqui. Dentro e fora. Ao redor. Eu estou. E isso também não é uma questão, por mais que se possa duvidar. Estamos em jogo. Mas quem dá as regras sou eu. E você é a atriz, peça chave nesta confusão imensa. Você é uma atriz, Vladimir. Na cabeça: a cabeça. Um excesso de pensamento que por vezes o torna surdo e cego e mudo, para enfim, começar tudo de novo. Persista. 3:1. Eu te disse uma vez que vocês atrizes eram minha única verdade. Não estava mentindo, não estava inventando. É verdade. Mas lhe peço: não me deixe duvidar das mentiras que crio para continuar vivendo. Persista, defenda isso e convença a todos. Vença com os outros e nos prove, nos faça acreditar que Godot realmente vai chegar. Não importa que os outros não acreditem, importa ter algo no que se segurar, portanto, segure a peruca e siga adiante, por mais que às vezes pareça não se estar saindo do lugar. É Vladimir por tudo o que foi agora. Pelas perguntas, pela necessidade extrema de encontrar um sentido, uma explicação, por necessitar entender. Isso não é problema. Isso é possibilidade. Uma possibilidade. Sim. Fazer arte é uma merda. O “às vezes” poderia interceptar a frase anterior. Mas não estaríamos falando de arte. O que estamos construindo é muito potente. Apostamos no terror, na desorientação e na dificuldade. Agora é preciso ir ainda mais junto e com calma. Com calma. Para se chegar a algum lugar. E eu repito: estou aqui. Deixe-se ser guiada, deixe-se guiar. Você é Vladimir porque exige o sentido quando ele escapa. Duvida do sentido quando ele se revela. Quer entender, quer explicar, quer associar, quer encontrar um chão. Ser o que se é não é motivo para condenar, é motivo para estar aqui, vivo, pulsando, buscando, indo e voltando. Mas. E haverá sempre um “mas”, pelo menos. Peço que não se perca pensando demais porque isso nubla os seus olhos e tira deles a potência da sua busca. Mesmo estando eles abertos, eu sinto, eu acho, eu sei, acabarás não vendo que Godot passou, que já esteve ante a ti, que bateu à porta, mas você não ouviu, porque estava falando. Porque sua cabeça estava gritando. Espreita. Espera. Esperta. Você aposta que ele vai chegar, você se arruma para isso, ainda bem. Ainda bem, mesmo. É essa a sua fé, essa é sua religião. Ok. Mas não profane a qualquer custo. Proteja. Defenda. Não é mesmo para qualquer um. Não exija que tomem a sua causa. É antes. Bem antes disso. Eu só quero olhar para você e não duvidar da chegada de Godot. Basta. O povo é de uma burrice. Não queira ser o povo, Vladimir. E evite que o povo seja você. Há seres numa proporção extremamente delicada, num equilíbrio extremamente instável. Há seres cuja solidão é necessária. Vamos juntos e com calma. Ele vai chegar.