Há uma intuição amorfa que é minha relação com a peça. Estou convencido de que esta peça precisa ser feita hoje, e sem esta convicção não posso fazê-la (Brook, 1995).
Em 2007 tive contato, pela primeira vez, com o conceito de intuição amorfa desenvolvido por Peter Brook e colocado em questão pela professora Joana Lebreiro na disciplina Direção III. Lembro-me que neste momento comecei a ter clareza de que aquilo que eu viria a produzir como diretor teatral, independente do ponto de chegada, partiria sempre de um ponto de vista particular. Foi quando passei a dar mais atenção às minhas intuições e a pensar com mais cuidado sobre o espectador, aquele ao qual eu destinaria a minha produção.
No final de 2008, ao começar os estudos para a montagem de Direção V sobre o texto PASO-DE-DOS (do dramaturgo argentino Eduardo Pavlovsky, cuja estreia aconteceu em dezembro de 2009), me deparei com a noção de inconsciente coletivo. Na obra Em busca de um teatro pobre, Grotowski afirma: para que o espectador seja estimulado a uma auto-análise, quando confrontado com o ator, deve existir algo em comum a ligá-los, algo que possa ser desmanchado com um gesto, ou mantido com adoração. Portanto, o teatro deve atacar o que se chama de complexos coletivos da sociedade, [...] aqueles mitos que não constituem invenções da mente, mas que são, por assim dizer, herdados através de um sangue, uma religião, uma cultura e um clima (Grotowski, 1987).
Estimulado pelos escritos de Grotowski, desenhei uma função de que a obra de arte deveria ser capaz de gerar em quem se relaciona com ela alguma autonomia crítica. Para isso, seria inevitável um encontro entre obra e espectador. Fui então pesquisar sobre o inconsciente coletivo a fim de esclarecer aquilo que, depois vim a descobrir, Jung teria dito ser sedimentos de experiências constantemente revividas pela humanidade (Jung, 2008). Ora, se minhas montagens se destinavam ao outro, talvez eu devesse buscar entender alguma lógica provável sobre o outro. E, logo, optei que meus exercícios de direção se tornassem embates vivos, já que pelo encontro me parecia ser possível evocar no espectador algum esforço individual de compreensão. Mais que isso: evocar no espectador sua(s) maneira(s) de lidar com a obra e, inevitavelmente, sua(s) forma(s) de ler o mundo.
Acabei achando tudo isso pretensioso demais. Mas algo me dizia que era isso sim. Dessa forma, a melhor maneira de encontrar clareza foi se jogando em meio à escuridão. Fui com minha Direção V experimentar estas intuições por sobre um texto que apresentava uma situação de violência e dependência entre um homem e uma mulher, entre um torturador e uma torturada. Em processo, chegamos a um ditado popular que assegurava em si justamente uma leitura que eu desejava relativizar, a fim de tirar seu posto de verdade universal e configurá-la, naturalmente, como uma possibilidade e não mais como fim, inevitabilidade.
A expressão “quem cala consente” é vista por mim como uma dessas heranças apontadas por Grotowski. Ainda me soa ingênua, mas creio que se inscreva no âmbito do inconsciente coletivo, pois se configura como uma lógica já instituída e propagada, mesmo que sequer tenha sido compreendida por quem a divulga. Com a encenação de PASO-DE-DOS – que acabou sendo chamada de NÃO DOIS – construímos uma representação que se esforçava em tornar ruidosas algumas leituras já enraizadas em nosso psiquismo, como a de que o homem é sempre o agressor e a mulher sempre a vítima. Eu não queria mais os rótulos de torturador e vítima. Eu queria investigar uma construção de personagens que procurasse o seu caráter genuíno, complexo. Ou seja, como haviam se tornado aquilo ali pelo o qual estavam sendo julgados e classificados (torturador e torturada; homem e mulher). O meu esforço foi o de escrever, pela encenação, a expressão “nem sempre” dentro da construção “quem cala consente”. Como se quisesse dizer que quem cala – nem sempre – consente. Como se quisesse dizer que a vida persiste em espaços muitas vezes complexos de serem ditos e/ou tabelados.
E agora com ESPERANDO GODOT eu poderei dar continuidade ao que foi iniciado. Parto de outro provérbio que desta vez prega que “quem espera sempre alcança”. Porém, agora, desejo jogar de outra forma. Se em NÃO DOIS eu contrapus a imagem – encenação – ao que estava inscrito no inconsciente (“quem cala consente”), desta vez eu quero que a encenação assegure o que o ditado repete e instaura em nós: o fato de que quem espera acaba, inevitavelmente, por alcançar sua espera. Porém, com a dramaturgia de Beckett, temos em mãos um texto que “defende” a espera e anula a possibilidade da chegada. Sendo assim, é justamente pelo embate entre texto e encenação que pretendo problematizar essa impossibilidade da chegada. Será mesmo que não é possível que aquilo desejado chegue?
O embate, mais uma vez, torna-se necessário para que se descubra – por nós, neste momento – o valor da espera, quais são suas qualidades e como ela se movimenta. No final das contas, descobriremos, já não importa Godot chegar. Importa atentarmos para o ser humano como um ser fadado a uma incessante busca por preenchimento – esta sim – difícil de solucionar.