Ou aquilo que solicita atenção em mim.
Para iluminar esse processo particular de provocação na platéia, devemos nos afastar do trampolim representado pelo texto, e que já está sobrecarregado de um sem-número de associações gerais. Para isto, precisamos ou de um texto clássico, ao qual, através de uma espécie de profanação, restituímos ao mesmo tempo sua verdade, ou de um texto moderno, que pode ser banal e estereotipado no seu conteúdo, mas apesar disso enraizado no psiquismo da sociedade (Grotowski, 1987).
Pois eu escolhi um texto “clássico” para minha montagem de Direção VI. Desde muito cedo esta disciplina me pareceu o momento propício para o trabalho sobre uma boa dramaturgia, de certa forma conhecida e principalmente já muito testada em encenações diversas. A minha noção de clássico aqui diz respeito unicamente ao tempo de vida da obra. E eu queria uma obra que já tivesse um tempo agregado a ela, algum histórico, certo passado. Assim, depois de passar por A GAIVOTA de Anton Tchekhov, acabei escolhendo a Samuel Beckett e seu ESPERANDO GODOT (1949).
O primeiro pensamento em relação a montar GODOT surgiu quando conversava com amigos após assistirmos a uma montagem da peça HAMLET. MACHINE, de Heiner Muller, em 2009 no Rio de Janeiro. A nossa discussão após a peça enveredou para a busca de um motivo que justificasse uma montagem teatral, especulávamos sobre a necessidade do teatro hoje.
No meio da conversa, um dos presentes expôs seu encantamento com aquela que dizia ser a obra mais suprema da dramaturgia universal: ESPERANDO GODOT. Lembro-me que reagi ao comentário e afirmei, intuitivamente, que a primeira coisa que faria caso montasse GODOT hoje seria fazê-lo chegar, afinal, já não me parecia mais ser possível esperar por algo que desde sempre esteve predestinado a não chegar.
Confesso que até então eu não havia lido a peça. Terminei de ler ESPERANDO GODOT, pela primeira vez, em dezembro de 2009. E eis que muito do que eu ouvira falar da tão famosa obra de Beckett se revelou a mim com extrema clareza e energia. GODOT coloca em questão muitas demandas que eu também considero minhas, sobretudo, uma reivindicação do caráter naturalmente complexo do ser humano, num gráfico onde se alternam com estranha delicadeza o cômico e o trágico, assim como me parece ser a própria vida. Eu havia encontrado um texto que dizia da sua maneira aquilo que ainda hoje eu não consigo dizer por si só. Foi um encontro. Desses que só o teatro parece capaz de viabilizar.
Este projeto parte, então, do meu desejo em experimentar o texto de Beckett a partir do que ele fez reverberar em mim. O meu esforço é mesmo o de profanar sua obra, reafirmando Grotowski, ao lançar por sobre ela um olhar pessoal que busque, antes de tudo, revelar se seus valores já reconhecidos podem também se tornarem valores para mim. Quero tocar em ESPERANDO GODOT e revelar da obra tudo aquilo que ela mesma solicitou atenção em mim.