Publicado em 14 de março de 2010
Como espectador, Freud confessa seus limites e suas afinidades estéticas, mas não deixa de oferecer à arte um modo de pensar
“Não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo (…). Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte (…). Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer.” É com tais palavras que Freud (1914) se dirige aos seus leitores, tentando assegurar indulgência para o resultado de suas incursões no campo das artes. Na posição de espectador, confessa seus limites e suas afinidades estéticas, sugerindo uma diferença de estatuto entre as artes que constituem os pólos de referência da Psicanálise – literatura e artes plásticas.
Tragédia e pintura
Nascida entre a medicina e a literatura, a Psicanálise tem lugar garantido no campo da construção ficcional, encontrando na tragédia uma chave para o trabalho de interpretação, uma vez que ela já oferece uma representação privilegiada do que é posto em jogo em uma Psicanálise: a relação do desejo com a castração (Lyotard). É diferente a situação da pintura. No pensamento de Freud, a questão principal é a seguinte: a tela, assim como uma cena onírica, representa um objeto ou uma situação ausentes que, censurados, só se dão a ver por meio de seus representantes simbólicos.
Como o sonho, o objeto plástico é pensado segundo a função de representação alucinatória e de ludíbrio. Aproximar-se desse objeto com palavras que permitem a apreensão de seu sentido significa dissipá-lo, assim como a conversão da imagem onírica em discurso conduz a significação para o espaço da racionalidade, rasgando o véu das representações sob o qual essa significação se ocultava. O objeto plástico, enquanto construção muda e visível, situa-se no espaço de realização imaginária do desejo. E é nisto que reside a função da arte, conforme aparece no ensaio Escritores criativos e devaneio (1908), quando Freud distingue dois componentes do prazer estético: um prazer propriamente libidinal que provém do conteúdo da obra à medida que esta nos permite realizar nosso desejo (o que fazemos por identificação com o personagem ou com algum elemento do assunto tratado na obra) e um prazer proporcionado pela forma ou posição da obra que se oferece à percepção não como um objeto real, mas como uma espécie de brinquedo, de objeto intermediário, a propósito do qual são permitidos pensamentos e condutas com os quais o espectador pode se deleitar sem auto-acusações nem vergonha.
Essa função de desvio com relação à realidade e à censura é uma característica das obras de arte. E, considerando que o interesse de Freud pela arte relaciona-se à leitura dos significados reprimidos e inconscientes, o trabalho artístico é entendido como uma atividade de expressão sublimada de desejos proibidos. E o artista, nessa medida, é concebido como um ser talentoso o bastante para transformar os impulsos primitivos, sexuais e agressivos, em formas simbólicas, isto é, culturais. Como os sonhos e os jogos de linguagem, o trabalho artístico facilita a expressão, o reconhecimento e a elaboração de sentimentos reprimidos, tanto para os artistas quanto para os espectadores que, por sua vez, compartilham com os primeiros a mesma insatisfação com as renúncias exigidas pela realidade e, por intermédio da obra, a experiência estética. Assim, o vínculo entre psiquismo e arte pode chegar a ser concebido de um modo tão direto ou imediato que a singularidade da obra é perdida de vista, ao mesmo tempo em que o psiquismo passa a ser simplesmente ilustrado pela obra.
A partir dessa concepção de arte, duas são as perspectivas analíticas possíveis: privilegia-se o conteúdo, isto é, o motivo na pintura, e compreende-se o enquadramento plástico, conforme a função representativa, como um suporte atrás do qual se desenvolve uma cena inacessível; ou, então, busca-se, escondido sob o objeto representado, uma forma supostamente determinante do imaginário do pintor. Entretanto, através dessas análises, corre-se o risco de identificar efeito estético e efeito narcótico. Se a forma estética é uma espécie de véu destinado a subornar as defesas do destinatário, somos obrigados a admitir, paradoxalmente, que o efeito estético é anestésico (Thévoz).
E, nesse sentido, no tocante à ordem social, tal visão da arte é conservadora.
Psicanálise e arte moderna
Não é um exagero pensar que tudo o que importa em matéria de pintura, pelo menos após Cézanne (1839-1906) – ao contrário da facilitação do adormecimento da consciência e da realização do desejo inconsciente do espectador –, é produzir no suporte uma espécie de análogo do próprio inconsciente, suscitando inquietude, revolta, perplexidade, interrogação. Desde o começo do século 20, a situação das obras parece não mais satisfazer as condições propostas por uma estética derivada de Freud. E isto porque o sinistro e o vazio descaradamente assaltam as formas. Se, ao ser comparada à arte clássica, a arte moderna mostra-se diferente é porque a angústia a perfura, subvertendo a sua função: a obra desublima as formas culturais, abrindo-as às forças disruptivas. E talvez seja esta uma razão pela qual Freud suspeitava da arte de seu tempo, contrária às suas convicções. Porém, se a análise freudiana parece inadequada à pintura é que não só a pintura diferenciou-se, mas no próprio tempo dos escritos freudianos (1895-1938), a arte já mudara de maneira e de temática.
Principalmente com as vanguardas, o espaço pictórico construído no Quattrocento decai e com ele a função da representação que ocupava o centro da concepção freudiana da arte. Assim, compreender a arte moderna com a noção de representação e sua correlata – a sublimação – é ignorar a modernidade das artes. Ora, desde a primeira década do século 20, a Psicanálise coexiste com o modernismo. As obras de Klimt, Schiele, Moser e Kokoschka convulsionaram a Viena moderna de Freud, embora este nunca tenha se referido a tais artistas e nem mesmo a algum outro seu contemporâneo.
E, no entanto, é possível visualizar algumas aproximações entre arte moderna e Psicanálise: o fascínio pela origem e o valor atribuído aos sonhos, às fantasias e à sexualidade; a sensibilidade à mulher, à criança e ao louco; a reflexão sobre o estranho, a alteridade e a intersubjetividade. Além disso, os surrealistas inspiraram-se na Psicanálise para elaborar suas idéias no campo visual e muitos outros incorporaram termos psicanalíticos em seus próprios discursos críticos como, por exemplo, repressão, sublimação, fetichismo… E, mesmo que a compreensão da arte tenha se diferenciado com os chamados pós-freudianos, a tese da leitura simbólica permanece, como se a obra de arte fosse sempre análoga ao sonho a ser decifrado, como se ela fosse a codificação de um enigma ou a representação de complexos estados mentais a serem decodificados. Trata-se de um modo de interpretar a arte que curiosamente pode se aproximar da crítica moderna da arte.
Psicanálise como perspectiva crítica
Diferentemente da crítica moderna, entretanto, na vertente inaugurada por Baudelaire que põe o crítico como intérprete entre público e artistas, a crítica da arte contemporânea não se aproxima das obras sabendo o que elas são, pois tais obras resistem à crítica armada de valores estéticos pré-estabelecidos para interpretá-las e legitimá-las como arte. Nesse sentido, um aspecto importante da crítica contemporânea é a abertura a outras perspectivas com origens diversas – na Filosofia, nas ciências humanas e até nas ciên-cias naturais. E muitos dos estudiosos que contribuem para esse campo não se consideram especialistas em estética, mas, antes, filósofos, antropólogos, teóricos da linguagem e, evidentemente, psicanalistas. No caso da Psicanálise a questão é particularmente interessante porque, no século 20, constatamos a emergência de um sentir definido no âmbito da afetividade e da emoção que não se deixa reconduzir com facilidade às referências clássicas da estética, desenvolvidas na passagem do século 18 para o 19. Nessa medida, Freud é considerado um autor importante pela crítica de arte contemporânea.
Com efeito, considerando que o discurso psicanalítico não é normativo e que a Psicanálise compatível com a arte não pode ser “aplicada”, mas implicada – isto é, derivada da arte ou engastada nela, pois não é uma forma pré-moldada a se aplicar à matéria exterior, não é um modelo que ajusta abstratamente o objeto artístico às suas exigências teórico-conceituais –, a Psicanálise reivindicada pelas artes não é método de investigação da cultura, mas um modo de pensar que busca escapar da repetição ao infinito daquilo que teoricamente já se sabe. É a esse modo de pensar inventado por Freud que os analistas são obrigados a se referir, se pretendem estar fazendo Psicanálise e se pretendem expressar os sentidos de uma obra – clássica, moderna ou contemporânea.
A obra no lugar do analista
São basicamente dois os estudos de Freud que abordam as artes plásticas – Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910) e Moisés de Michelangelo (1913). Se, no primeiro, Freud já tentava operar a partir do cruzamento entre dois pontos de vista, o endopoiético e o exopoiético – isto é, o que considera os constituintes internos à obra e o que considera os fatores provenientes do contexto que a sustenta –, na leitura do Moisés, a primeira perspectiva fica mais clara, aprofundando o campo compreendido pelas estruturas subjetivas do artista que não se confundem com os dados biográficos do criador. As estruturas subjetivas não são da ordem dos acontecimentos, mas resultam da transformação das relações entre exterior e interior. Nesse sentido, o crítico que toma o partido das estruturas subjetivas não pode excluir de sua pesquisa sua própria estrutura subjetiva (André Green). E, devido à implicação do sujeito no objeto, a interpretação será sempre arriscada, pois o intérprete está livre de um lado exatamente porque está ligado ao outro, podendo acontecer que as descobertas afetem sua relação com seu próprio inconsciente. E talvez seja este o tributo a ser pago por esta transgressão epistemológica mediada por um outro – o universo oculto do artista implicado na obra.
Quando se trabalha com obras de arte, é preciso reconhecer este risco e aceitá-lo. No entanto, não é fácil manter-se aberto à alteridade que nos interroga, uma vez que as obras estão sempre a exigir de nós criação para delas termos experiência. É uma experiência propriamente estética que Freud elabora na relação com a peça de Michelangelo. Livre de todo jogo de projeções teórico-conceituais, Freud se deixa guiar pela obra ao analisar os seus detalhes plásticos e a sua fortuna crítica, dispondo-se a uma percepção nova: a obra como momento de uma história invisível a reconstruir. E, a partir da hermenêutica formada no campo entre seu olhar e a obra, rompe com a ideologia artística da verdade universal, fixada anacronicamente. Diferente foi seu trabalho com Leonardo da Vinci. Embora a estética da criação esteja pressuposta, o artista não é tratado como “divino”, mas como um homem comum. Nesse caso, não é a estética a questão principal, mas a temática da vida.
O que Freud faz é apontar para a troca contínua entre passado e futuro, mostrando que cada vida sonha enigmas cujo sentido final não está fixado em parte alguma, e exige liberdade criativa para a fiel retomada de si mesma. É, portanto, um equívoco eleger o Leonardo como modelo da aproximação psicanalítica das artes plásticas. Ao contrário, é a análise do Moisés que legitima essa relação, levando o analista a repensar noções constituídas no campo da interpretação: o contato com a obra suscita no espectador questões a analisar. Mas, apesar de diferentes, os dois ensaios contestam o falado conservadorismo de Freud. Ao tratar um gênio clássico como homem comum, nosso autor reafirma a vocação da Psicanálise para a subversão do instituído.
E, com o ensaio sobre a escultura, quase meio século antes de a crítica ser sacudida com a tese de Duchamp – “são os espectadores que realizam as obras” –, Freud dá seus próprios passos na linha da estética da recepção. Com isso, a Psicanálise, talvez à revelia de seu inventor, entra dignamente no campo da crítica contemporânea, oferecendo às obras um modo de pensar que, como a arte, busca transcender a familiaridade das formas culturais.
João A. Frayze-Pereira é professor, livre docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Psicanalista do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Membro da Association Internationale des Critiques d’Art (AICA). Publicou, entre outros, Olho d’Água. Arte e Loucura em Exposição (Escuta / Fapesp, 1995).
Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/freud-e-a-arte/