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1. Teatralidade e mimetismo
Ao pensar na arte teatral, é inevitável refletir sobre a teatralidade, concentrada na dimensão espetacular do fenômeno teatral – ou seja, no palco. Dessa perspectiva, teatralidade estaria em oposição a texto dramático; a este último, reserva-se o âmbito da narratividade, o primado da palavra, do diálogo; aquela opera na construção visual de signos, constituindo-se como uma linguagem à parte do texto. Contudo, o ponto de vista por nós adotado neste trabalho pretende colocar a questão de um outro ângulo, mais próximo da complementaridade do que da oposição. Dito de outro modo, a teatralidade não é privilégio do palco, podendo ser construída a partir do próprio texto dramático. Tudo que, no texto, contribui para a construção de sua visualidade, todos os signos que se configuram iconicamente (gesto, figurino, marcação de cena, objetos de cenário, entonação) são matrizes de imagens, são apelos à construção visual do leitor.
Percorrer a história da dramaturgia ocidental é deparar-se com diferentes concepções acerca da teatralidade que, todavia, giram em torno da mesma problemática: o questionamento da arte teatral como forma de representação do mundo. Um marco fecundo dessa reflexão é o século XIX, momento em que se estabelece a estética realista/ naturalista para quem o teatro é visto como imagem viva do real. O surgimento da fotografia e o desenvolvimento de técnicas cênicas, particularmente novos usos da iluminação, viabilizam a pretensão de tornar o palco um espaço de reprodução da vida, constituindo assim uma “teoria mimética da representação. Um mimetismo radical, que exclui qualquer idealização, qualquer estilização” (ROUBINE, 2003, p.110). Lançando mão dos mais variados expedientes, o palco naturalista procura elevar a ilusão dramática à máxima potência, transformando-se num microcosmo que espelha o real. Paradoxalmente, o resultado desse esforço é evidenciar que, mesmo quando a intenção é reproduzir o real, o teatro não consegue escapar das convenções; “a ideologia da ilusão leva os Naturalistas a esquecerem que a passagem do real para o palco implica sempre num ‘discurso’ sobre o real, e que não existe teatro sem convenção”, observa Fachin (2000, p.272). Mesmo a ilusão mais bem enredada é decorrente da técnica, da construção artística a partir de certas convenções estéticas. Roubine (2003) observa que nem mesmo o mais intransigente mimetismo consegue escapar de algum mecanismo de estilização, constatação que se torna o grande mérito da teoria teatral naturalista.
O interesse da teoria naturalista do teatro talvez esteja no fato de que ela funda uma dialética da representação. Ela se instala na tensão entre uma aspiração “moderna” à reprodução idêntica do real em todas as situações [...] e a rede de convenções sem as quais essa reprodução não consegue nem mesmo pensar em existir. O naturalismo se afirma contra as convenções existentes, mas, ao mesmo tempo, o naturalista sabe perfeitamente que as infletirá, as transformará talvez, mas não as fará desaparecer. (ROUBINE, 2003. p.112).
Se a estética naturalista defende um “mimetismo radical” – portanto, reduz o escopo da teatralidade –, a estética simbolista, ao sobrevalorizar o texto, a simbologia da palavra e da imagem poética, reduz radicalmente a importância da cena, chegando mesmo a considerá-la prejudicial ao texto. Na contracorrente do Naturalismo, os poetas simbolistas questionam radicalmente a possibilidade de compreender a arte como reprodução da realidade, propondo o resgate daquilo que a palavra tem de sugestivo, de alusivo a uma realidade não necessariamente concreta, mas principalmente possível, criada pelo olhar arguto e subjetivo do artista. “Para eles, a realidade sensível não é senão a aparente alusão a uma realidade espiritual superior” (ROUBINE, 2003, p.120). A representação teatral adquire – ou recupera, nas origens do próprio teatro – um caráter ritualístico, dando ênfase à recriação da palavra do texto dramático por meio de imagens cênicas revestidas de sentido simbólico. Sem nenhum receio da acusação de “textocentrismo”, o teatro simbolista assume que a mediação do palco é um risco ao texto; portanto, só é válido o espetáculo que consegue evidenciar as potencialidades líricas da palavra poética. O palco simbolista fica nu. Desprovido de aparato cenográfico, considerando o ator apenas um veículo de proclamação da palavra de um outro, o dramaturgo, o teatro simbolista acaba por “desvalorizar, se não eliminar, todos os outros elementos constitutivos da teatralidade” (ROUBINE, 2003, p.122).
A despeito da negação da teatralidade e a exemplo da estética naturalista, os simbolistas deixam um importante legado para a estética teatral do século XX. A simbologia proposta influencia tendências como o teatro do absurdo, que também recusa o mimetismo e os efeitos de ilusão, assim como veste a cena com imagens apenas apreendidas por um viés simbólico. Assim também alguns dramaturgos e encenadores, preocupados com a recepção teatral, defendem um maior espaço para a recepção do espectador, isto é, propõem abrir mão de mostrar tudo no palco para que a sugestão estimule a imaginação do público.
Por conseguinte, temos que ambas as estéticas, ao negarem a teatralidade, acabam por colocá-la em questão, procedimento fundamental para o desenvolvimento da estética teatral no século XX; aliás, assiste-se no período à “reteatralização” do teatro operada particularmente a partir das idéias e experimentalismos do russo Meyerhold. Em lugar da valorização da declamação do texto, são revalorizados signos que devolvem a teatralidade ao palco: o corpo do ator, mímica e dança, máscaras e figurinos, além do cenário que abandona a tendência de réplica do real para tornar-se uma imagem grávida de significações múltiplas; tudo colabora para que a representação recupere seu caráter teatral, como destaca apropriadamente Mostaço (2008, p.1):
Vsevoldod Meyerhold, ao propugnar o teatro teatral por ele forjado, insistia em destacar na cena exatamente sua característica construída, artística, resultado de signos inflados de significação que poderiam, facilmente, ser tomados como símbolos. A teatralidade, nessa acepção, surge valorada positivamente, como uma virtude artística.
2. Metateatro: matriz de teatralidade
Não coincidentemente esse processo acontece ao mesmo tempo em que a arte, em todas as suas manifestações, vive um momento de intensa reflexividade, de profundo questionamento sobre seus limites e alcances, funções e determinações. A metalinguagem torna-se uma marca da arte das primeiras décadas do século; também a arte teatral – entendida aqui em sua dupla configuração, isto é, literatura dramática e arte cênica – abraça a missão de refletir sobre sua configuração, não podendo escapar à questão sobre o que é o teatro e como ele se produz. O metateatro em suas múltiplas manifestações atende a essa nova necessidade do teatro. A peça dentro da peça, a inserção do discurso crítico no discurso ficcional, a criação de personagens com consciência dramática, o questionamento acerca das fronteiras entre o real e a representação do real, a ruptura da ilusão teatral por meio da desconstrução da quarta parede são alguns dos procedimentos que se fazem presentes nas obras da maior parte dos dramaturgos do século XX representantes das mais variadas tendências (Luigi Pirandello, Bertolt Brecht, Jean Anouilh, Samuel Beckett).
Não coincidentemente esse processo acontece ao mesmo tempo em que a arte, em todas as suas manifestações, vive um momento de intensa reflexividade, de profundo questionamento sobre seus limites e alcances, funções e determinações. A metalinguagem torna-se uma marca da arte das primeiras décadas do século; também a arte teatral – entendida aqui em sua dupla configuração, isto é, literatura dramática e arte cênica – abraça a missão de refletir sobre sua configuração, não podendo escapar à questão sobre o que é o teatro e como ele se produz. O metateatro em suas múltiplas manifestações atende a essa nova necessidade do teatro. A peça dentro da peça, a inserção do discurso crítico no discurso ficcional, a criação de personagens com consciência dramática, o questionamento acerca das fronteiras entre o real e a representação do real, a ruptura da ilusão teatral por meio da desconstrução da quarta parede são alguns dos procedimentos que se fazem presentes nas obras da maior parte dos dramaturgos do século XX representantes das mais variadas tendências (Luigi Pirandello, Bertolt Brecht, Jean Anouilh, Samuel Beckett).
O metateatro coloca em cena os bastidores da criação espetacular, resgatando assim a percepção do espetáculo e do texto como construção intencional, reafirmando a teatralidade enfraquecida no final do século XIX. Ao apagar as fronteiras entre público e platéia, lembrar constantemente o espectador que ele está no teatro, interpor um narrador entre a ação representada e aquele que a assiste, criar personagens autônomas em relação a seu criador e àqueles que tentam representá-las no palco, perverter a configuração tradicional de categorias dramáticas como tempo, espaço, ação e diálogo, os dramaturgos modernos abrem caminho para que o metateatro seja uma nova matriz de teatralidade.
Pavis (1999, p.373), ao enunciar a questão “a teatralidade é uma propriedade do texto dramático?”, a coloca em termos da polêmica texto versus espetáculo; haveria uma espécie de texto dramático que visa à cena e dela necessita para alcançar plenitude – e por isso chamado de “teatro puro” – em oposição a uma outra espécie de texto cuja organização prescinde da atualização cênica, nomeado, então, “teatro literário”. O surgimento da figura do encenador, em fins do século XIX, desloca a questão da oposição entre teatro puro e teatro literário ao definir o palco como espaço primordial da construção da teatralidade, estabelecendo que “a teatralidade não surge mais, pois, como uma qualidade ou essência inerente a um texto ou a uma situação, mas como uso pragmático da ferramenta cênica, de maneira a que os componentes da representação se valorizem reciprocamente e façam brilhar a teatralidade e a fala”.
Embora a teatralidade seja mais evidentemente uma propriedade da cena, acreditamos que o texto seja também um espaço de sua construção, particularmente ao trabalharmos com a hipótese de que o metateatro revela os bastidores da construção do texto e do espetáculo. Para constatar a pertinência dessa abordagem, basta verificar como os signos teatrais disseminados no texto trazem uma teatralidade latente a partir da qual o receptor é convidado a construir mentalmente o espetáculo; mais do que isso, é instado a perceber a arte teatral como convenção, acordo necessário entre autor e platéia para que o prazer do jogo teatral seja possível, sinal evidente do caráter de construção estética da arte teatral.
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Conclusão
O metateatro é um dos recursos encontrados pela dramaturgia moderna para reteatralizar o palco no século XX. Muitos signos teatrais – cenário, personagens, palavra, gestos, som – são trabalhados de modo a não permitir que o espectador mergulhe na ilusão, lembrando-o constantemente de estar no teatro e que tudo que se desenrola no palco é previamente estabelecido, calculado, programado. Assim, a dramaturgia moderna caminha para uma consciência aguda de seus anseios e limites, questionando formas dramáticas e técnicas de representação.
O texto dramático assume sua vocação teatral e se revela como espaço de inscrição virtual do espetáculo, reforçando a dupla natureza do fenômeno teatral. Nesse contexto, o metateatro pode ser compreendido como matriz de teatralidade por devolver a arte teatral ao terreno das convenções dramáticas; mais ainda, fazer dessas convenções objeto de reflexão do próprio teatro.
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Grifos meus. | Fonte:
Metateatro: inscrição do espetáculo no texto dramático
Profa. Dra. Sonia Aparecida Vido Pascolati (UEL)
http://andrelg.pro.br/simp%F3sios/SONIA_PASCOLATTI.pdf
Grifos meus. | Fonte:
Metateatro: inscrição do espetáculo no texto dramático
Profa. Dra. Sonia Aparecida Vido Pascolati (UEL)
http://andrelg.pro.br/simp%F3sios/SONIA_PASCOLATTI.pdf