Ipiabas, 24 de dezembro de 2009.
Estou lendo O teatro é necessário? de Denis Guénoun. Naturalmente, muitas coisas estão surgindo em minha cabeça. Segue algumas viagens que estou tendo a partir da leitura.
Uma primeira idéia que surgiu foi pensar sobre aquilo que o espectador espera da peça. Isso mesmo, pegar o verbo esperar e jogá-lo aos espectadores. O que será que esperam? Será uma espera que se saciará ou não? Como lidamos com esta espera? Em que ela afeta o jogo da cena? Eles esperam pelas cenas, por alguma revelação? Os espectadores esperam que revelemos uma nova forma para o mesmo já conhecido? Viagem, mas, imaginei uma cena com Vladimir e Estragon sentados próximos à árvore e caindo dela, uma carta, na qual lessem aquilo que se espera do espetáculo que eles estão prestes a executarem.
“Nós acharíamos ridículo que para atuar [...] a pessoa se apresentasse no palco sem preencher as condições básicas [...] Nós esperamos da tragédia abalos violentos [...] Espera-se que o ator seja sincero, [...] espera-se que ele seja hábil [...]”. (Guénoun, 1977).
Em seguida, voltei a pensar numa escolha primeira que fiz e que é um tanto arbitrária. Mas escolha na qual eu insisto, mesmo sem entender ainda o porquê. Eu quero trabalhar apenas com atrizes. Num primeiro momento, com quatro atrizes que possam interpretar Vladimir, Estragon, Pozzo e Lucky. Mas depois, lendo o livro acima, me veio a idéia de que na verdade são quatro atrizes se debatendo em seis personagens, pois além dos quatro já citados, ainda temos o Menino e, claro, Godot.
Ainda seguindo um pouco nesta busca pela utilização das atrizes, pensando sobre seu espaço e sua relação com as personagens, me perdi numa questão que muito me intriga. Guénoun escreve num dado momento, ao discorrer sobre O Paradoxo do Comediante, de Diderot:
“É quando se assinala a maior distância entre o ator e o personagem que o primeiro pode se identificar com o segundo. Só é possível se identificar com aquilo que está distante – distinto e longe de si mesmo. Caso contrário, não há identificação possível; a pessoa é a mesma, supondo-se que se pudesse imaginar isto. A identificação é este movimento: o de redução de uma distância que deve, portanto, ser, antes, criada. O ator não desliza até ela a não ser a partir da diferença representativa, da ampliação da fissura entre a ação e a imagem, entre a imitação e o imitado. Ele só pode (eventualmente) se identificar com seu papel no caso de este se ter tornado autônomo, fora ou acima dele, como espectro”. (Guénoun, 1977).
Foi quando eu comecei a pensar no jogo da cena como um jogo de espera. Jogo no qual as atrizes tivessem que se organizar e jogar as cenas, dentro de regras pré-estabelecidas, mas que fossem guiadas pelo desejo de estar em cena, pela necessidade, articulando nisso também o esforço da espera. Esforço da espera, no sentido de que deveriam prezar não unicamente pela sua presença em cena, mas também pela presença do outro. Como se todas as quatro atrizes soubessem como jogar com todos os personagens, mas não soubessem ainda com qual deveriam jogar. Nem com quem. Um jogo real onde a cada cena vista e feita as atrizes – de fora (sobrando) – reordenariam os papéis e entrariam em cena. As atrizes que estavam esperando fora de cena, atestariam pela sua espera, a necessidade real daquela mudança que se deu com sua entrada.
Vou tentar ser mais claro (não sei ainda o que é essa idéia, mas me parece prenhe de algo que me interessa muito): tenho duas atrizes em cena, brincando com os papéis de Vladimir e Estragon. Fora de cena, porém em jogo, visíveis, duas outras atrizes esperam não necessariamente para interpretarem Pozzo e Lucky, mas para outra coisa. Estariam fora de cena avaliando o interior, zelando por ele, tentando compreender o que nele acontece e o que ele devolve à platéia, ao espectador. A partir deste distanciamento, deste olhar mais atento e clínico, não menos apaixonado, as atrizes de fora poderiam entrar em cena e substituírem as outras, jogando com Vladimir e Estragon no lugar de cena que acharem ser necessário.
Da necessidade. Para jogarmos pela necessidade é preciso haver previamente um conceito mútuo que nos situe aquilo que consideramos ser necessário. Ou seja, o que é necessário neste espetáculo? Necessidade em relação ao espetáculo, à estética do mesmo, ao espectador, às atrizes? Enfim...
Estou pensando apenas nesse jogo onde a espera das atrizes resulta em renovação, em não espera, em mudança, em tentativa, erro, volta ao texto. Olha isso. Se o nosso mote é desesperar Godot, se o nosso mote é não mais aceitar esta espera. Logo, o jogo de quem está de fora, é conseguir insuflar para dentro da dramaturgia de Beckett alguma lufada de energia, alguma lufada de força que os possa tirar daquele caminho-precipício já anunciado e conhecido. Como se as atrizes entrassem toda vez que sentissem alguma possibilidade de mudança real daquela situação sem solução.
Mas acho que talvez o texto de Beckett, sua desesperança, sua história, trague as atrizes rumo ao fim de suas personagens. Seria um embate entre atrizes e personagens. Um embate metalingüístico, no sentido em que as atrizes usariam seus personagens também para justificarem a sua mudança de postura. Ou seja, elas usariam as falas e ações das personagens para atestarem a eles e a elas e ao público, sobre o cansaço de esperar Godot.
Estou falando de uma metodologia de ensaios e criação de cenas ou já da própria cena? Não sei. Interessa-me pensar nas duas possibilidades. Ainda creio que preciso desenvolver muito mais a questão do teatro fazendo teatro. Nos personagens cansados de serem personagens. Isso me leva às atrizes. São atrizes cansadas? Ou personagens? O personagem tem corpo ou seu corpo são palavras?
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Referência Bibliográfica
Guénoun, D. (1977). O teatro é necessário? São Paulo: Perspectiva.