Diogo dê uma olhada no texto do Peter Pál Pelbart, ele publicou o artigo em uma revista e hoje o mesmo artigo se encontra no livro "Vida Capital", de sua autoria e com o título "Poder sobre a vida, potências de vida".
A potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, afetação recíproca, produção de laço, capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. Uma economia imaterial que produz sobretudo informação, imagens, serviços, não pode basear-se na força física, no trabalho mecânico, na automatismo burro, na solidão compartimentada. São requisitados dos trabalhadores sua inteligência, sua imaginação, sua criatividade, sua conectividade, sua afetividade - toda uma dimensão subjetiva e extra-econômica antes relegada ao domínio exclusivamente pessoal e privado, no máximo artístico.
Como o diz Toni Negri, agora é a alma do trabalhador que é posta a trabalhar, não mais o corpo, que apenas lhe serve de suporte. Por isso, quando trabalhamos nossa alma se cansa como um corpo, pois não há liberdade suficiente para a alma, assim como não há salário suficiente para o corpo. Em todo caso, que a alma trabalhe significa, nos termos que mencionávamos há pouco, que é a vitalidade cognitiva e afetiva que é solicitada e posta a trabalhar. O que se requer de cada um é sua força de invenção e a força-invenção dos cérebros em rede se torna tendencialmente, na economia atual, a principal fonte do valor.
É como se as máquinas, os meios de produção tivessem migrado para dentro da cabeça dos trabalhadores e virtualmente passassem a pertencer-lhes. Agora sua inteligência, sua ciência, sua imaginação, isto é, sua própria vida passaram a ser fonte de valor. A associação e cooperação entre uma pluralidade de cérebros prescinde, no limite, da mediação do capitalista, tão decisiva num regime fordista.
Podemos retomar nosso leitmotiv: todos e qualquer um, e não apenas os trabalhadores inseridos numa relação assalariada, detêm a força-invenção, cada cérebro-corpo é fonte de valor, cada parte da rede pode tornar-se vetor de valorização e de autovalorização. Assim, o que vem à tona com cada vez maior clareza é a biopotência do coletivo, a riqueza biopolítica da multidão. É esse corpo vital coletivo reconfigurado pela economia imaterial das últimas décadas que, nos seus poderes de afetar e de ser afetado e de constituir para si uma comunialidade expansiva, desenha as possibilidades de uma democracia biopolítica.
Duas palavrinhas ainda. Uma a respeito do termo “biopolítica” e outra a respeito do termo “multidão”. Biopolítico foi o termo forjado por Foucault para designar uma das modalidades de exercício do poder sobre a vida, vigentes desde o século 18. Centrada prioritariamente nos mecanismos do ser vivo e nos processos biológicos, a biopolítica tem por objeto a população, isto é, uma massa global afetada por processos de conjunto.
Biopolítica designa pois essa entrada do corpo e da vida, bem como de seus mecanismos, no domínio dos cálculos explícitos do poder, fazendo do poder-saber um agente de transformação da vida humana. Um grupo de teóricos, majoritariamente italianos, propôs uma pequena inversão, não só semântica, mas também conceitual e política. Com ela, a biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder e de sua racionalidade refletida tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução, sua vida.
A própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biológicos que afetam a população. Vida inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo. Como diz Lazzarato, a vida deixa de ser reduzida, assim, a sua definição biológica para tornar-se cada vez mais uma virtualidade molecular da multidão, energia a-orgânica, corpo-sem-órgãos. O bios é redefinido intensivamente, no interior de um caldo semiótico e maquínico, molecular e coletivo, afetivo e econômico.
Aquém da divisão corpo/mente, individual/coletivo, humano/inumano, a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza e se totaliza. E ao descolar-se de sua acepção predominantemente biológica, ganha uma amplitude inesperada e passa a ser redefinida como poder de afetar e ser afetado, na mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por Foucault: biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a potência da vida.
A biopolítica como poder sobre a vida toma a vida como um fato, natural, biológico, como zoè, ou como diz Agamben, como vida nua, como sobrevida. É o que vemos operando na manipulação genética, mas no limite também no modo como são tratados os prisioneiros da Al Qaeda em Guantánamo ou os adolescentes infratores nas instituições de “reeducação” em São Paulo. Mas os atos de auto-imolação espetacularizada que esses jovens protagonizam em suas rebeliões, diante das tropas de choque e das câmaras de televisão, parecem ser a tentativa de reversão a partir desse “mínimo” que lhes resta, o corpo nu, e apontam numa outra direção.
Muito cedo o próprio Foucault intuiu que aquilo mesmo que o poder investia - a vida - era precisamente o que doravante ancoraria a resistência a ele, numa reviravolta inevitável. Mas talvez ele não tenha levado essa intuição até as últimas consequências. Coube a Deleuze explicitar que ao poder sobre a vida deveria responder o poder da vida, a potência “política” da vida na medida em que ela faz variar suas formas e, acrescentaria Guattari, reinventa suas coordenadas de enunciação. De maneira mais ampla e positiva, essa potência da vida no contexto contemporâneo equivale precisamente à biopotência da multidão, tal como descrita acima.
Ainda uma palavra sobre a multidão. Tradicionalmente o termo é usado de maneira pejorativa, indicando um agregado indomável que cabe ao governante domar e dominar. Já o povo é concebido como um corpo público animado por uma vontade única. Com efeito, como o diz Paolo Virno, e nas condições contemporâneas isso é ainda mais visível, a multidão é plural, centrífuga, refratária à unidade política. Ela não assina pactos com o soberano e não delega a ele direitos, seja ele um mulá ou um cowboy. Ela inclina-se a formas de democracia não representativa. Talvez ela seja regida por uma lei-esquiza, tal como os nômades de Kafka.
Numa fórmula sugestiva, Virno ainda diz: a multidão deriva do Uno, o povo tende ao Uno. O que é esse Uno do qual a multidão deriva? Para ir rápido, é o que Simondon chamou de realidade pré-individual (e que os pré-socráticos chamavam de a-peiron, ilimitado), que Tarde referiu como virtualidade, que Marx designou por intelecto geral. Chamêmo-lo de caldo biopolítico, esse magma material e imaterial, corpo-sem-órgãos que precede cada individuação - a potência ontológica comum.
A multidão, na sua configuração acentrada e acéfala, no seu agenciamento esquizo, pode ser vista como o oposto da massa. Canetti lembra que na massa são abolidas todas as singularidades, nela reina a igualdade homogênea entre seus membros (cada cabeça equivale a cada outra cabeça), a densidade deve ser absoluta (nada deve se interpor entre seus membros, nada deve abrir um intervalo em seu meio) e, por último, nela predomina uma direção única, que se sobrepõe a todas as direções individuais e privadas, que seriam a morte da massa.
Homogênea, compacta, contínua, unidirecional, a massa é todo o contrário da multidão, heterogênea, dispersa, complexa, multidirecional. A economia paranóica da massa e a lógica esquizo da multidão são diametralmente opostas, mesmo que elas se encavalem, como o notaram Deleuze e Guattari a propósito da relação entre massa e malta. De todo modo, as religiões, bem como os Estados, sempre souberam usar e dosar a energia da massa e seus afetos, mas encontram-se em situação inteiramente distinta em relação à multidão, que testemunha de um outro desejo e de uma outra subjetividade.
Eu concluo. Talvez Foucault continue tendo razão: hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação (de um povo sobre outro, por exemplo) e contra a exploração (de uma classe sobre outra, por exemplo), é a luta contra as formas de assujeitamento, isto é, de submissão da subjetividade, que prevalecem. Talvez a explosividade desse momento tenha a ver com a extraordinária superposição dessas três dimensões.
Voltam as perguntas insistentes: como pensar as subjetividades em revolta? Como mapear o sequestro social da vitalidade na desmesurada extensão do Império e na sua penetração ilimitada, tendo em vista as modalidades de controle cada vez mais sofisticadas a que ele recorre, sobretudo quando ele se realavanca na base do terrorismo generalizado e da militarizaçao do psiquismo mundial? Mas como cartografar igualmente as estratégias de reativação vital, de constituição de si, individual e coletiva, de cooperação e autovalorização das forças sociais avessas ao circuito formal da produção?
Como acompanhar as linhas de êxodo e desinvestimento ativo dos “excluídos”? Em que medida a virtualidade da multidão extrapola o sistema produtivo atual e suas vampirizações, os modelos de subjetivação que ele engendrou (por exemplo, o do trabalhador assalariado), os cálculos do poder que ele suscita, a captura imperial e suas linhas de comando? Além de recusar o sistema de valores e de exploração hegemônicas, como cria ela suas próprias possibilidades irredutíveis, mesmo quando isso é feito a céu aberto, nem que o Imperador esteja por perto, à espreita, espiando para ver no que poderia ele capitalizar aquilo que dele escapa?
Não sei o quanto as poucas páginas de Kafka sobre a Muralha da China refletem a paranóia do Império contemporâneo, com suas estratégias frustras para proteger-se dos excluídos que ele mesmo suscita, cujo contingente não pára de aumentar no coração da capital, numa vizinhança de intimidação crescente e num momento em que, como diria Kafka, sofre-se de enjôo marítimo mesmo em terra firme. Não sei o quanto os nômades de Kafka, na sua indiferença ostensiva em relação ao Império, não podem ajudar a pensar a lógica da multidão.
Seja como for, em Kafka uma ironia fina vai solapando a solene consistência do Império. Há algo no funcionamento do Império que é puro disfuncionamento. Quando, nas Conversas com Kafka, Janoush diz ao escritor checo que vivemos num mundo destruído, este responde: “Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado”.
Rachaduras e estalos que Kafka dá a ver, e que a situação contemporânea escancara. Talvez o desafio atual seja intensificar esses estalos e rachaduras a partir da biopotência da multidão. Afinal o poder, como diz Negri inspirado em Espinosa, é superstição, organização do medo: “Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais baixo: este ponto... é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas são as mais pobres e as mais exploradas; ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe; pois tudo isso é a vida e não a morte”.
O texto acima foi originalmente publicado na revista francesa “Multitudes”, número 9, de maio-junho de 2002. Peter Pál PelbartÉ doutor em filosofia e professor na PUC-SP. É tradutor e estudioso da obra de Gilles Deleuze (traduziu para o português "Conversações", "Crítica e Clínica" e parte de "Mil Platôs"). Escreveu sobre a concepção de tempo em Deleuze ("O Tempo Não-reconciliado", Perspectiva, 1998), sobre a relação entre filosofia e loucura ("Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão", Brasiliense, 1989, e "A Nau do Tempo-rei", Imago, 1993) e publicou, mais recentemente, "A Vertigem por um Fio: Políticas da Subjetividade Contemporânea", Iluminuras, 2000.