Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima
Professora Assistente Doutora, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, USP. Membro do Laboratório de Estudos e Pesquisa “Arte e Corpo em Terapia Ocupacional ”.
No inquietante filme de Lars von Trier, Dogville, após um final absolutamente constrangedor, até pela sensação de alívio que a vingança provoca, somos confrontados com imagens reais de miséria e abandono que, por mais esforço que se faça para que esqueçamos, também encontramos nos EUA. Assim, o filme parece tratar, sobretudo se dermos crédito a grande parte da crítica especializada (ver, por exemplo Christian Petermann, 2003), de uma parábola antiamericana sobre as relações de uma sociedade fechada e comunitária e, aparentemente solidária, com um forasteiro.
No inquietante filme de Lars von Trier, Dogville, após um final absolutamente constrangedor, até pela sensação de alívio que a vingança provoca, somos confrontados com imagens reais de miséria e abandono que, por mais esforço que se faça para que esqueçamos, também encontramos nos EUA. Assim, o filme parece tratar, sobretudo se dermos crédito a grande parte da crítica especializada (ver, por exemplo Christian Petermann, 2003), de uma parábola antiamericana sobre as relações de uma sociedade fechada e comunitária e, aparentemente solidária, com um forasteiro.
Em relação a isso, Inácio Araújo (2004) tem razão quando diz que, nesses tempos de violência americana espalhada pelo globo, apresentar um filme como antiamericano é quase um lance de marketing. Mas dizer que Dogville é apenas antiamericano parece pouco.
Lars von Trier conta que ao ser criticado em Cannes por um jornalista americano por fazer um filme que se passava nos EUA sem nunca ter estado lá (o jornalista se referia a Dançando no escuro), resolveu que faria mais filmes cujas histórias se passassem na América, mas continuaria não pisando lá. Queria manter um olhar estrangeiro e um ponto de vista próprio construído pela força com que a cultura americana e seus produtos invadem todas as outras culturas (Trier, 2004). No entanto, é o próprio diretor quem nos alerta, a parábola que Dogville encena é sobre os Estados Unidos, mas é também sobre qualquer pequena cidade em qualquer lugar do mundo. “I think that people are more or less the same everywhere” (Trier, 2004).
E se o diretor oscila em suas declarações públicas a respeito de Dogville ser ou não um filme sobre a América, se a crítica se exaspera com o fato de um diretor filmar sobre algo que “não conhece”(ver Caligaris, 2004), esta questão parece menor diante daquilo que o filme sugere: as mentes estreitas, ou os tartufos (Araújo, 2004), estão por toda parte neste mundo no qual o império dominou até os mais recônditos espaços de nossas mentes e de nossos corações. Não é de se estranhar que uma reportagem recente publicada na Revista Veja (Costa, 2004) sobre um novo programa da televisão chinesa que “ensina os chineses a consumirem como os ocidentais” - e que tem sido acolhido com altos índices de audiência pela população -, termine com a afirmação de que “os chineses estão cada dia mais parecidos com o resto da humanidade”.
Assim, as relações de atração, repulsa, sedução e opressão entre uma comunidade e a figura do estrangeiro, encenadas no filme, podem estar em íntima conexão com o que se passa na sociedade americana, mas não só. Neste sentido, o sentimento que predomina, também nos personagens do filme, mas principalmente no expectador, é o de um profundo desconforto com as forças que vão se delineando pouco a pouco na trama das relações. Não seriam essas forças bastante familiares para nós? Talvez, mais que antiamericana, esta parábola do cineasta seja um grito contra o modo de vida hegemônico no capitalismo e que nos atravessa a todos. Como se o diretor quisesse dizer que este funcionamento global tira de todos o que cada um tem de pior.
Hannah Arendt, em seu livro A condição humana (2003), desenvolve a idéia de que a forma de existência predominante no contemporâneo praticamente reduziu todas as atividades que realizamos, em especial a capacidade de produzir obras e realizar ações, ao denominador comum de um labor voltado a assegurar as coisas necessárias à vida do nosso corpo biológico, produzi-las e consumi-las. Esta vida que o labor visa manter se refere ao processo biológico do corpo humano. A autora toma a distinção grega entre zoe (a vida comum a todos os seres vivos) e bios (a vida especificamente humana, plena de eventos e que constitui uma maneira de viver peculiar). Giorgio Agambem, partindo da mesma distinção, denomina o primeiro tipo de vida de vida nua, afirmando que o regime contemporâneo exerce um poder sobre a vida que, travestido de defesa da vida, a reduz à sua modalidade biológica (Pelbart, 2003).
O homem reduzido ao labor e à manutenção de uma vida nua está aprisionado, segundo Arendt, a uma atividade que se desenvolve de forma cíclica e repetitiva, cujo único objetivo é a produção cada vez maior de coisas pouco duráveis a serem consumidas, e que não termina senão com a exaustão da força de trabalho. Quando tudo que fazemos se resume a este mecanismo de produção incessante de bens perecíveis e consumo incessante desses mesmos bens, deixamos de construir um mundo e de estar entre os homens como seres políticos e ficamos reduzidos às nossas necessidades privadas. Segundo a autora, toda a nossa economia tornou-se economia do desperdício, na qual tudo deve ser devorado. Hoje consumimos incessantemente, não apenas coisas tangíveis, mas, sobretudo, imagens e signos. Vivemos a futilidade de uma vida que não se realiza em coisa alguma que seja permanente; perdemos o mundo comum. Tornamo-nos seres inteiramente privados: privados da presença dos outros, da realidade que advém de compartilhar um mundo, de realizar algo permanente. Tornamo-nos prisioneiros de uma subjetividade encapsulada.
Para esses pobres seres privados que somos nós, a única experiência de espaço público que resta é a exposição daquilo que outrora pertencia ao âmbito da vida privada, o que talvez possa ajudar a compreender a onda de reality shows espalhados pelo mundo e a crescente exposição da esfera privada das celebridades (ou não) nas diversas mídias. Como o efeito causado pelo cenário de paredes invisíveis e pela transparência de alguns objetos e materiais criados por Lars von Trier em DogVille, que igualam o movimento da rua e o movimento de dentro de casa, tornando, para o espectador, todos os espaços indistintamente públicos e privados.
Neste contexto, qualquer tempo livre, não dedicado ao trabalho em sua qualidade de labor, volta-se para o consumo. Como em Dogville, as horas vagas, adquiridas por cada um dos habitantes da pequena vila a partir da oferta de Grace, e que poderiam libertá-los, ao menos um pouco, do ciclo interminável do labor, só podem ser gastas com a atividade incessante de consumir a própria forasteira.
O chamado “tempo livre” neste modo de vida
jamais é gasto em outra coisa senão em consumir; e quanto maior é o tempo de que se dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os apetites. O fato de que estes apetites se tornam mais refinados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida, mas ao contrário visa principalmente as superfluidades da vida, não altera o caráter desta sociedade; acarreta o grave perigo de que chegará o momento em que nenhum objeto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo. (Arendt, 2003, p.146)
A esse pensamento o filme de Lars von Trier parece acrescentar que nem mesmo os homens estarão a salvo de se tornarem objetos desta dinâmica. A figura de Nicole Kidman/Grace, sempre bela e limpa, destoando dos habitantes locais mesmo depois de longo período de convivência com eles, se oferecendo e se colocando à disposição do outro, nos faz pensar de algum modo numa imagem publicitária: é a própria encarnação da felicidade ao alcance de todos e ao mesmo tempo inatingível – tão perto, tão longe.
A oferta sem limites cria e recria uma demanda sem fim e que jamais poderá ser respondida ou aplacada. A demanda criada provoca um incansável movimento de consumo e de insatisfação. Consumir tudo, inclusive o outro que se oferece. É disso que trata o filme; é disso que se trata no capitalismo.
E se o capitalismo conseguisse capturar a totalidade da existência e não houvesse margens, bordas ou qualquer saída, não restaria senão a aniquilação de todos os habitantes da pequena cidade perpetrada no final do filme, equivalente da aniquilação dos habitantes do planeta. Seríamos, mesmo, todos tartufos, sem esperança nem futuro.
Mas, apesar da poderosa máquina de produção subjetiva que constrói e captura nossos desejos, há sempre algo que escapa e pulsa nas bordas desse modo de vida, desenhando, impertinentemente, pequenas saídas, outros possíveis. São esses processos microscópicos que o filme de Lars von Trier não alcança captar. Seu mapa, detendo-se nos estados de coisa já dados, não acompanha os movimentos intensivos que escapam a esses estados de coisa e não revela as milhares de linhas de diferenciação que se insinuam cotidianamente por entre as malhas rígidas do capitalismo mundial integrado.
Talvez, neste ponto, devêssemos recordar Foucault (2002), para quem ali onde incide o poder, ali também se exerce a resistência. Se o poder contemporâneo investe sobre a vida, reduzindo-a a sua modalidade orgânica e biológica (como quer Agambem), e limita todas as atividades humanas ao labor (como sugere Arendt), as forças que resistem a este poder se apóiam sobre aquilo mesmo que ele investe, a vida, e buscam expressão na realização de atividades que escapem à lógica do labor.
Ao poder sobre a vida se opõe a potência da vida, aquilo que nela não se deixa aprisionar, sua qualidade de indeterminação, sua capacidade de reinventar-se, tomar novas forma e fazer-se vida qualificada. Esta vida como bios, a qual Aristóteles se referia dizendo que é de certa forma uma espécie de práxis, só pode ser afirmada se restituirmos às atividades humanas suas qualidades de construir um mundo comum e tecer a rede das relações humanas. E se todas as atividades humanas foram reduzidas à condição de labor, no sentido da manutenção desta vida nua, a arte permanece sendo uma forma de resistência das mais poderosas.
Ao poder sobre a vida se opõe a potência da vida, aquilo que nela não se deixa aprisionar, sua qualidade de indeterminação, sua capacidade de reinventar-se, tomar novas forma e fazer-se vida qualificada. Esta vida como bios, a qual Aristóteles se referia dizendo que é de certa forma uma espécie de práxis, só pode ser afirmada se restituirmos às atividades humanas suas qualidades de construir um mundo comum e tecer a rede das relações humanas. E se todas as atividades humanas foram reduzidas à condição de labor, no sentido da manutenção desta vida nua, a arte permanece sendo uma forma de resistência das mais poderosas.
Uma das poucas atividades que ainda nos permitem criar um mundo, conferindo durabilidade e permanência ao caráter efêmero do tempo humano, e obras que escapam à aniquilação pelo ciclo incessante da produção e do consumo. Como nos propõe Deleuze (1999), a obra de arte é um ato de resistência. Ato que resiste à morte e, ao construir um mundo comum, apela por um povo que ainda não existe, contribuindo para a invenção de outras formas de vida.
Referências
ARAÚJO, I. Von Trier enxerga apenas martírio dos perfeitos. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 mar. 2004. Ilustrada, p.E8.
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
CALIGARIS, C. Filme do cão. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jan. 2004. Ilustrada, p.E9.
COSTA, R. A rainha da classe média: o sucesso do programa de TV que ensina os chineses a consumir
como os ocidentais. Rev. Veja, p.65, 21 abr. 2004.
DELEUZE, G. O ato de criação. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jun. 1999. Caderno Mais!, p.4-5.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
PELBART, P. P. Vida capital. São Paulo: Iluminuras, 2003.
PETERMANN, C. Dogville. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 a 30 out. 2003. Guia da Folha, p.5.