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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

o drama que nos urge

meninas, vou falar sobre a nossa dramaturgia. sobre como demos muitas voltas para ganhar a consciência da importância de nossa invenção ainda não toda assumida. falo de miranda. dessa vadia desconhecida. falo de como é preciso encadear dramaturgicamente os passos e as tentativas. aos poucos essa clareza me cega e exige sua expressão. dentro de mim os pedaços se aglutinam e pedem reconhecimento. é quase um desespero. sendo assim, a seguir, esboço algo a partir do que escrevi no ônibus indo para o ensaio. aquilo que li a vocês, mas que sei não estar profundamente claro. naturalmente que ao passar para o blog, já vou tomar o cuidado de clarear ainda mais a parada. mas peço que vocês cliquem aqui, meninas. para não esquecermos de fato quando a clareza deve aportar. é lá na frente. é daqui a pouco. mas não é agora. agora é só confusão.

segue abaixo o descritivo de cada tentativa tomando miranda como eixo central, como eixo ao redor do qual o drama há de acontecer:

PRIMEIRA TENTATIVA_ESTAMOS ENTERRANDO GODOT

As quatro atrizes hesitam para aceitar a morte de Godot. A peça começa e já é quase um pré-luto. Em silêncio, elas talvez remoam o fato de terem sido elas as responsáveis pela sua morte, afinal, por tanto tentar encená-lo, acabaram por consumir sua última força, sua poesia e drama. Assim, elas demoram a aceitar o fato que acaba sendo imposto por uma delas: estamos enterrando Godot. É isso. Ele morreu. Não dá para fingir que é outra coisa. A partir dai é só assumir o fato porque - inclusive - é preciso que ele morra para que se possa ultrapassar tudo isso, para que se possa esperar por outra coisa que não mais o mesmo. Eis então que surge Miranda, tão aleatória e avassaladora como a própria vida.

SEGUNDA TENTATIVA_AS QUATRO EVANGELISTAS

Quem é Miranda não parece importar de antemão. Importa ter algo em mãos, isso sim. Importa não dormir no enterro de Godot. Ou seja: mal morre Godot e surge Miranda, as atrizes já começam a louvar sua nova deusa. Quem é ela? Repito: não importa dizer. Miranda talvez seja só o nosso jogo, o jogo entre eles, o encontro e os íntimos movidos e costurados, ouvidos e respeitados. Miranda é a diferença agindo sem contraindicação. Quero dizer: é como se Miranda fosse mesmo uma nova religião, uma nova ideologia, um porto-seguro capaz de comportar o vazio de nossas existências. Mas isso resolveria?

TERCEIRA TENTATIVA_E SOMOS INESGOTÁVEIS

Não. Porque elas são inesgotáveis. Porque somos inesgotáveis, é vero. E quem nos fez descobrir essa potência foi Miranda. Sua busca dinamitou nosso corpo e sentidos. Buscar Miranda (que não sabemos que não virá) é nos descobrir como estrelas de pontas luminosas e cortantes. Nós somos inesgotáveis. É Miranda quem nos permite reconhecer nossa potência latente e desesperada. Miranda me faz ser quem eu sou sem saber que sou.

QUARTA TENTATIVA_QUEM ALCANÇA SEMPRE ESPERA

Pretensa consciência. Que não resolve nada. Afinal, o que falta para ser resolvido? Quanto mais vai pior fica. Disse alguém certa vez. É o tempo que está passando. E o que fazer? Vamos improvisar. E nisso, elas descobrem que, de fato, quem alcança sempre espera. E não o contrário. Miranda fez nascer em cada uma certa ousadia, certa propensão ao impossível. Sim, como elas podem inverter os costumes sem arcar com o risco? Como podem destruir o comum e se manterem vivas? Nesta brincadeira de televisão, já tão cheias de si e autônomas de Miranda, as atrizes trazem o corpo morto de Godot para enciumar sua deusa divina. Elas descobrem no Godot morrido a falência da qual não possuíam consciência. É brincando que a vida se reorienta. É no jogo que a vida se desorienta. Em outras palavras: é fingindo que Miranda não importa que sua necessidade se faz mais legível e tangível. Paradoxo armado: é não esperando Miranda que mais a esperamos de fato.

QUINTA TENTATIVA_O NOSSO PAPEL NISSO TUDO

Crise existencial. As atrizes se percebem amarradas a tal Miranda. Fodeu geral. Seria possível não mais buscá-la? Mas Godot está morto e Miranda - elas começam a suspeitar - talvez seja apenas outro Godot, um Godot mais delas do que de seu passado. Miranda seria filha de Godot? Pelo amor de deus, quem é ela? Importa saber? Miranda é só um Godot com data de nascimento mais colada a nossa. É um Godot Guerra Fria e não pós-guerra. É abertura, neoliberalismo e globalização. Miranda é puro espetáculo, é pura sedução. Miranda tornou a vida algo insuportável. Qual seria então o papel dessas quatro atrizes? Qual é o papel delas nisso tudo? É melhor fugir da vida, elas constatam. E nisso se munem do outro que não elas para aguentar o tranco. As atrizes se trancam enfim dentro da ficção.

SEXTA TENTATIVA_NÃO QUEREM REPRESENTAR?

Mas dentro mesmo da ficção, elas acabam descobrindo que Miranda as persegue. Miranda é pura existência. Não dá pra escapar nem mesmo quando em ficção. Ou seja, não adianta fugir. Miranda é vida. E criação também é. A ficção que serviria para desembaraçar a vida acaba embaraçando ainda mais tudo isso. A ficção, maliciosa, acaba adensando tudo aquilo que por vezes tentamos não lidar com inteireza e profundidade. Quem somos nós, afinal? Somos vida? Ou ficção? Isso é vida real?

SÉTIMA TENTATIVA_EL SILENCIO DE MIRANDA

O telefone toca. Ainda bem. Mas é Miranda. O diretor disse ser Miranda. Enquanto ele sai para atender o telefone, as atrizes trocam entre si declarações passionais sobre o absurdo de sua situação. Elas não aguentam mais. Mas o diretor retorna e tudo volta a ser o que era. Ele diz que Miranda não virá. Ele diz que ela ligou e que informou não ser possível chegar a tempo. Comoção geral. Nem sei explicar. É quase um clímax. Miranda não vem mesmo. Desespero e agonia. Comem potes inteiros de leite condensado. Nesse auge descompensatório, uma das atrizes se faz imune ao drama e bate na cara de Miranda: lhe diz as verdades, diminui nossa deusa, para ficar por cima. Puxa seus cabelos e a reduz a quase nada. Sem ser explícito, percebemos que para aguentar a falta de quem amamos é mais fácil agredir nosso amor, diminuí-lo.

OITAVA TENTATIVA_O MENINO

Espera. Nem tudo está perdido. A cova que Miranda abriu e não veio nela se deitar, é antes playground do que convite ao suicídio coletivo . Não vamos partir. Vamos ficar. Porque estivemos esse tempo entre nós reunidos. E isso bastou. Miranda é pretexto para o encontro. E aqui estamos: encontrados. Nos achamos nesse mundo cheio de tanta gente talhada a quina e não a afeto. Miranda me fez encontrar vocês, meninas. E me fez olhar de volta ao mundo, a procura de suas feições, de seus gestos e sentidos. Miranda me fez amar o meu medo, o meu pior, me fez cruzar limites como fossem meus limites apenas riscos de giz no chão da infância. Que não venha, Miranda. Que fique na sua imensidão inatingível. Que seja como são os deuses, meros pretextos para sermos sozinhos e quase invisíveis. Só que aqui estamos reunidos e a sua espera. E amamos essa nossa vocação. É te esperando que nos encontramos. É a cada espera a ti destinada, cara Miranda, que mais nos olhamos olhos nos olhos. Que mais nos despimos e andamos pelados dentro e fora de nossas caixas. Podemos fazê-la chegar. Mas vamos fingir que não sabemos disso. Vamos continuar fingindo. Por hoje vamos fazer chegar só o menino. Por hoje, só o menino. Só a criança capaz de seguir brincando com o destino. E isso nos fará dormir com o coração quentinho e satisfeito.

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