Meninas,
começo a escrever aqui o desenho mais preciso que consigo de cada tentativa (cena) de nosso espetáculo. Estamos contagiados com o instável, com o terror que pode - de fato - chacoalhar as estruturas da cena e trazer o novo. Esquecemos, talvez, que quem ali nos assiste - Miranda - não compartilha conosco nada além do presente. Miranda não tem passado nem sequer futuro. Ela não sabe do processo nem de tudo o que fizemos para estar ali. Miranda apenas é e está, disposta ao desconhecido que nós aos poucos desbravamos ante a ela - sem pretensão ou desejo de explicar, esclarecer, elucidar, dar sentido... Enfim.
O que resta, no além de Miranda, somos nós. Meros descontentes que a cada fala e cena quer rever o tom e refazer para melhorar. Para ser melhor e melhor e, um dia quem sabe, conseguiremos ser infelizes por completo. Tenho percebido isso, o fato de a angústia nossa ser mesmo criacional. Fizemos espelho nos personagens de Beckett e enquanto eles sofrem a existência, nós sofremos a nossa condição: aquela do ser artista, que estreia a todo e cada dia querendo se possível ser eterno, querendo se possível não morrer e domar os segundos. Mas não... Não vamos conseguir frear o que não se freia. Não vamos parar nada, nem sequer um segundo.
O que fazer então? Se a vida avança e nos leva junto? Se a sensibilidade que notamos ter nos machuca mais que encanta? Talvez tenhamos chegado ao limite primeiro e real de tudo isso. Lembram-se do limite? Pois então... Estamos no exato ponto em que para dar cabo à vida, as nossas questões mais internas e inteiras, talvez se mostre preciso torná-las ficção. Chegamos ao limite no qual a nossa sinceridade já não serve mais, porque a consumimos com a fome característica dos que amam. Então, como ser sempre e de novo a cada dia o mesmo sem perder a crença nisso? Como dotar de vida o ser empalhado e fazê-lo voar como se fosse - no momento da peça - um pássaro genuíno?
Limites. Expansões. Precisamos aceitar de vez sermos espaços vagos e não construção. Volto a dizer que Miranda morre a cada vez que projetamos em nós, nossos corpos, alguma possível solução que apazigue seus ânimos. Ontem, no debate-surpresa após o espetáculo, se uma cena dividiu tantas opiniões, como podemos dizer o que é esta cena e o que ela não é? Como podemos firmar em nós um sentido se ela, vazia enquanto possível, sozinha enquanto disponível, soube aglutinar em si uma leitura e outras mais?
Somos sujeitos à interpretação. E não gostaria que fosse o inverso, não gostaria de ser interpretação aos sujeitos. Não. Eles já fazem isso. Nós também o fazemos. Como podemos anular em nós a velocidade que em cada espectador o domina? Como podemos apaziguar nossos corpos para serem apenas um vazio, uma página em branco para os nossos, os deles e também para os disparates de Miranda?
É continuar tentando. Mas, creio eu, com mais crueldade do que até agora nos permitimos tentar.