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quinta-feira, 25 de março de 2010

“Terror, Desorientação e Dificuldade” por Anne Bogart

Por Anne Bogart
Tradução: Diogo Liberano

Como uma diretora fazendo teatro na beira do século XXI, eu quero examinar o papel de certos aspectos específicos do processo de criação, incluindo o papel do embaraço, o papel da violência, o papel do estereótipo, o papel do humor, o papel da dúvida, o papel do interesse e o papel da memória cultural e da tradição. Eu começo aqui com uma das experiências humanas mais primárias e básicas: o terror. Qual é o papel do terror, da desorientação e da dificuldade no meu trabalho e no trabalho de outros artistas de teatro?

Meus primeiros encontros com teatro foram surpreendentes e me expuseram a uma arte viva com um inominável mistério e perigo. Essas experiências muito cedo tornaram difícil para mim se relacionar com alguma arte que não tivesse as raízes em alguma forma de terror. A energia das pessoas que enfrentam e incorporam o seu próprio terror é genuína, palpável e contagiosa. Em combinação com o profundo senso de jogo de artistas, o terror torna-se atraente no teatro tanto no processo criativo como na experiência vivida por uma platéia.

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Eu nasci numa família de marinheiro e nós sempre mudávamos a cada um ou dois anos para uma nova base naval em outra parte do país ou do mundo. Minhas referências culturais foram os filmes da Disney, coquetéis e porta-aviões. Minha primeira pincelada com terror em arte aconteceu num parque em Tóquio, Japão, quando eu tinha seis anos de idade. Um enorme rosto pintado a branco surgiu saindo de um corpo imenso e multicolorido. Eu me escondi, aterrorizada, atrás da saia da minha mãe. Essa visão horrenda e bonita foi a minha primeira exposição a um ator fantasiado numa máscara. Alguns meses depois na mesma cidade, eu assisti aterrorizada a enormes altares de madeira sendo carregados por homens japoneses bêbados por ruas de Tóquio durante um dia sagrado. Os homens bêbados e os altares esporadicamente esmagavam vitrines de lojas. Eles pareciam fora de controle, fora de suas consciências e totalmente incapazes de esquecerem tudo aquilo.

Com quinze anos, quando meu pai foi postado em Newport, Rhode Island, eu vi uma primeira apresentação profissional de teatro produzida pela Trinity Repertory Company em Providence, Rhode Island. O Fundo Nacional de Doação Humanitária garantiu à companhia dinheiro suficiente para que recebesse estudantes secundaristas de todo o estado em seu teatro para verem suas peças. Eu era uma dessas estudantes e viajei à Providence num ônibus escolar grande e amarelo para assistir Macbeth. A produção me aterrorizou, desorientou e me selvagerizou. Eu não pude focar minha atenção para a ação. As bruxas saltavam inesperadamente do teto, a ação nos envolvia em grandes corridas e eu não entendia as palavras. A incomum língua falada era Shakespeare e a fantástica linguagem visual, a qual eu também desconhecia, foi meu primeiro encontro com a linguagem poética do palco, pela qual tamanho e escala eram alterados. A experiência foi assustadora mas convincente. Eu não entendi a peça, mas soube instantaneamente que gastaria o resto da minha vida na caça por aquele universo notável. Naquele dia em 1967, eu recebi a minha primeira lição como diretora: nunca falar à platéia. Ficou imediatamente claro para mim que a experiência teatral não era para que nós entendêssemos o sentido da peça ou o significado da encenação. Nós éramos convidados para um mundo único, uma arena que transformava tudo previamente estabelecido. A Trinity Company poderia ter facilmente usado o grande subsídio recebido para facilmente presentear crianças e preencher suas demandas escolares. Ao contrário, eles nos apresentaram uma visão complexa e extremamente pessoal à força, num estilo áspero. A produção e os artistas envolvidos falaram a mim diretamente de uma forma visceral e fantástica.

A maioria das experiências notáveis que eu tive no teatro me preencheu com incertezas e desorientação. Eu posso, de repente, não reconhecer um prédio que antes me era familiar ou não poderia diferenciar cima de baixo, perto de longe, grande de pequeno. Atores que eu pensei que conhecesse são inteiramente irreconhecíveis. Eu geralmente não sei se eu odeio ou se amo o que estou experienciando. Eu observo que eu estou sentada adiante, não inclinada para trás. Essas produções grandiosas são geralmente longas e difíceis; eu me sinto separada e um pouco fora da minha essência. E mesmo assim eu sou alguém modificada quando a jornada se completa.

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Nós nascemos em meio ao terror e ao tremor. De frente ao nosso terror, ante ao incontrolável caos do universo, nós rotulamos o máximo que conseguimos com a linguagem na esperança de, por já ter nomeado um objeto antes, passar a não mais temê-lo. Essa rotulação nos dá uma sensação de segurança ao mesmo tempo em que mata o mistério daquilo rotulado, removendo a vida e o perigo para fora do que foi definido. A responsabilidade do artista é trazer a potencialidade, o mistério, o terror e o tremor de volta. James Baldwin escreveu, “A finalidade da arte é trazer à tona as perguntas que foram escondidas nas respostas”. O artista tenta a indefinição, para apresentar o momento, a palavra, o gesto como novo e cheio de um potencial incontrolável.

Eu me tornei uma diretora de teatro sabendo inconscientemente que eu teria que usar o terror pessoal da minha vida como artista. Eu tive que aprender a trabalhar em parceria e não com medo em relação a este terror. Eu me senti aliviada em descobrir que o teatro é um espaço útil para concentrar essa energia. Alheio a quase todo caos incontrolável da vida, eu pude criar um espaço de beleza e um senso de comunidade. Nos espaços mais profundos da dúvida e da dificuldade, eu encontrei coragem e inspiração nos meus colaboradores. Tornamo-nos capazes de criar uma atmosfera de boa vontade, intensidade e amor. Eu criei um refúgio para mim, para os atores e para platéias através desta metáfora que é o teatro.

Eu acredito que a função do teatro é a de nos atentar para a grande estrutura humana, de nos lembrar do nosso terror e de nossa humanidade. Nas nossas vidas cotidianas, vivemos em constantes repetições de hábitos padronizados. A maioria de nós dorme no decorrer de nossas vidas. A arte deve oferecer experiências que alterem esses padrões, acordando o que está adormecido, e nos lembrando do nosso terror original. O ser humano primeiro criou o teatro em resposta ao terror cotidiano da vida. Das pinturas nas cavernas às danças ao redor de inúmeras fogueiras, de Hedda Gabler erguendo sua pistola à desintegração de Blanche Dubois, nós criamos formas esperançosas para nossas aflições. Eu descobri que o teatro que não endereça o terror não possui energia. Nós criamos sob o medo, não a partir de um lugar seguro. De acordo com o físico Werner Heisenberg, artistas e cientistas compartilham uma abordagem em comum. Eles começam seus trabalhos com uma mão firme desejando algo específico enquanto a outra mão está sobre o desconhecido. Nós precisamos acreditar em nós mesmos para entrar nesse abismo abertos, com autoconfiança, apesar dos desequilíbrios e vulnerabilidades. Como acreditar o bastante em nós mesmos, em nossos colaboradores e nas nossas habilidades a partir do terror que vivenciamos nesse momento da partida, do início?

William Hurt, o ator, recentemente entrevistado no The New York Times, disse, “Aqueles que funcionam por medo, procuram segurança, os que funcionam pela confiança, buscam liberdade”. Essas duas possibilidades influenciam dramaticamente o processo criativo. A atmosfera do espaço de ensaio, portanto, pode estar imbuída tanto de medo como por confiança. As escolhas nos ensaios são feitas baseadas num desejo de segurança ou numa busca por liberdade? Eu estou convencida que as escolhas mais dinâmicas e emocionantes são feitas quando há confiança no processo, nos artistas e no material. O saldo atrativo em um trabalho é o amor, a confiança e um senso de humor; confiança nos colaboradores e o ato criativo em ensaio, amor pela arte e um senso de humor por sobre a tarefa impossível. Estes são elementos que trazem graça às situações em sala de ensaio e sobre um palco. Em confronto com o terror, a beleza é criada e, então, há o encanto.

Eu quero criar um teatro que é cheio de terror, beleza, amor e crença no potencial de mudança inato do ser humano. A responsabilidade começa nos sonhos. Como eu posso começar a trabalhar com esse espírito? Como eu posso trabalhar, não para subjugar, mas para abraçar o terror, a desorientação e a dificuldade?

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Toda vez que eu começo uma nova produção eu me sinto como se estivesse fora da minha medida; sinto que eu não sei nada e não tenho noção alguma de como começar e estou certa de que alguma outra pessoa deveria estar fazendo meu trabalho, alguém mais seguro, que saiba o que precisa ser feito, que seja realmente profissional. Sinto-me desequilibrada, desconfortável e deslocada. Eu sinto algo como um pretexto. Eu geralmente encontro um caminho para transpor aquilo sobre a mesa de trabalho para a produção, onde as discussões necessárias, análises e leituras acontecem, mas sempre um momento de medo chega quando já é hora de colocar algo no palco. Como algo pode ser correto, verdadeiro ou apropriado? Eu desesperadamente tento imaginar alguma desculpa para fazer algo mais, para prorrogar um pouco mais. E quando nós começamos de fato a trabalhar no palco, tudo o que deveríamos fazer ali soa artificial, arbitrário e afetado. Eu tenho certeza que os atores pensam que eu estou louca. A todo o momento em que o dramaturgo se aproxima da sala de ensaios eu sinto que a aquilo que os atores estão fazendo não reflete nada da nossa discussão dramatúrgica. Eu me sinto pouco sofisticada e superficial. Por sorte, depois de um limite com essa dança do absurdo, eu começo a observar que os atores começam a transformar aquela encenação idiota em algo que me entusiasma e em relação ao qual eu começo a responder.

Eu falei com inúmeros diretores de teatro e percebi que eu não estou sozinha nessa sensação de estar fora do eixo no início dos ensaios. Nós todos trememos diante da impossibilidade do começo. É importante lembrar que um trabalho de direção, com qualquer artista, é intuitivo. Muitos jovens diretores cometem o grande erro de presumir que direção diz respeito a ser controlado, a dizer ao outro o que precisa ser feito, ter ideias e receber aquilo que se pediu. Eu não acredito que estas habilidades são as qualidades necessárias para um bom diretor ou para um teatro excitante. Dirigir diz respeito a sentimentos, é sobre estar numa sala com outras pessoas – com atores, com designers, com uma platéia – é sobre sentir o tempo e o espaço, sobre respiração e resposta integral àquilo que se tem em mãos, sendo capaz de mergulhar e encorajar um mergulho rumo ao desconhecido num momento chave. David Salle, o pintor, disse numa entrevista, “Eu sinto que a única coisa que realmente importa na arte e na vida é ir contra o fluxo da literalidade e da mental-literalidade para insistir e viver uma vida da imaginação. Uma pintura tem que ser a experiência ao invés de apontá-la. Eu quero ter e dar acesso ao sentimento. Esse é o mais arriscado e importante caminho para conectar a arte ao mundo – para fazê-la viva. O resto se trata apenas de eventos usuais”.

Eu sei que eu não posso me sentar quando o trabalho está acontecendo sobre o palco. Se eu sento, um enfraquecimento entra em jogo. Eu dirijo a partir de impulsos do meu corpo em resposta ao palco, ao corpo dos atores, as suas inclinações. Se eu me sento eu perco a minha espontaneidade, minha conexão comigo mesma e com o palco, com os atores. Eu tento amaciar meus olhos, ou seja, não olhar com muita rigidez ou com muito desejo, porque a visão é mais dominante e expressiva que os outros sentidos.

Quando eu estou perdida nos ensaios, quando estou bloqueada e não tenho ideia do que fazer a seguir ou como resolver um problema, eu sei que é então o momento de dar um salto. Como dirigir é intuitivo, isso envolve caminhar com tremor por sobre o que é desconhecido. É ali, naquele momento, naquele ensaio, que eu devo dizer, “Eu sei!” e começar a caminhar em direção ao palco. Durante a crise dessa caminhada, algo deve acontecer: algum insight, alguma ideia. A sensação dessa caminhada em direção ao palco, rumo aos atores, me sugere a queda para dentro de um abismo traiçoeiro. A caminhada estabelece uma crise na qual a inovação deverá acontecer e a invenção precisará transpirar. Eu invento a crise num ensaio para sair do meu próprio caminho. Eu a crio, apesar de mim mesmo e das minhas limitações e hesitações. No desequilíbrio e na queda mora o potencial de criação. Quando as coisas começam a despencar nos ensaios, a possibilidade de criação existe. O que havíamos planejado anteriormente, o que tínhamos em mente naquele momento já não é interessante. Rollo May escreveu que todos os artistas e cientistas, quando estão fazendo seu melhor trabalho, sentem como se não estivessem fazendo uma criação, eles sentem como se estivessem sendo atravessado por uma fala. Como conseguir sair de nossos próprios caminhos durante os ensaios?

A vitalidade, ou energia, em qualquer trabalho é um reflexo da coragem de um artista diante de seu próprio terror. Para mim, o aspecto essencial de um trabalho é a sua vitalidade. A criação da arte não é uma fuga da vida mas uma penetração na mesma. Eu recentemente vi uma retrospectiva dos primeiros trabalhos com dança de Martha Graham. Eu estava assombrada que trabalhos como Primitive Mysteries tem agora cinqüenta anos e ainda assim são perigosos e ariscos. Graham uma vez escreveu para Agnes De-Mille:

Tem uma vitalidade, uma força de vida, uma pressa que é traduzida através de você como ação, e porque só há uma de você durante todo o tempo, essa expressão é única. E se você bloqueia isso, isso nunca irá existir por nenhum outro meio e se perde. O mundo não vai ter isso. Não é sua obrigação determinar o quão bom possa ser; nem o quão valioso isto seja; nem como isto se relaciona com outras expressões. É sua obrigação manter isto limpo e direto, para manter o canal aberto. Você não tem que acreditar em você mesma ou no seu trabalho. Você tem que se manter aberta e atenta às urgências que a motivam.

Vitalidade na arte é resultado de articulação, energia e diferenciação. Toda ótima obra de arte é uma obra diferenciada. Nossa consciência das diferenças entre as coisas ao redor nos toca pela fonte de terror. É mais confortável sentir semelhanças, enquanto não aceitamos o terror das diferenças a fim de criar uma arte vital. A terrível verdade é que nem duas pessoas são iguais, nem dois flocos de neve são iguais, nem sequer dois momentos são iguais. Os físicos agora dizem que nada nos toca, nada no universo tem contato; há apenas movimento e mudança. Isso é uma noção apavorante dada a nossa tentativa em fazer contato com o outro. A habilidade de ver, experienciar e articular as diferenças entre as coisas é a diferenciação. Ótimas obras artísticas incorporam essa noção de diferenciação sob variados modos. Uma pintura excepcional é aquela na qual, por exemplo, uma cor é altamente e visivelmente diferenciada de outra, pintura na qual nós vemos as diferenças em texturas, formas, relações espaciais. O que fez Glenn Gould uma musicista brilhante foi a sua abertura à alta diferenciação musical, que acabou por criar a intensidade extática de sua produção. No melhor teatro, momentos são altamente diferenciados. A habilidade do ator reside na diferenciação de um momento para o outro. Um grande ator parece perigoso, imprevisível, cheio de vida e diferenciação.

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Nós não somente precisamos usar nosso terror da diferenciação como também o nosso terror do conflito. Os americanos encontram-se aborrecidos com a doença da concordância. No teatro, nós geralmente presumimos que colaboração significa estar de acordo. Eu acredito que concordâncias demais constroem produções sem vitalidade, sem dialética, sem verdade. Acordos sem reflexo mortificam a energia de um ensaio. Eu não acredito que colaboração signifique fazer mecanicamente o que o diretor dita. Sem resistência não há fogo. Os alemães têm uma palavra útil para a qual não há uma equivalente apropriada em inglês: auseinandersetzung. A palavra, literalmente “colocar uma parte separada da outra”, é geralmente traduzida para o inglês como “argumento”, uma palavra com conotações geralmente negativas. Quanto mais feliz eu fosse estar num ambiente de ensaio agradável e despreocupado, mais ainda meu melhor trabalho se derivaria da auseinandersetzung, que significa para mim que para criar nós devemos colocar uma coisa ao lado da outra. Isso não significa, “Não, eu não gosto da sua abordagem, ou de suas ideias”. Não significa, “Não, eu não vou fazer o que você está me pedindo para fazer”. Significa, “Sim, eu vou incluir a sua sugestão, mas eu virei ao encontro dela por outro ângulo e somarei estas novas noções”. Isto significa que nós atacamos um ao outro, que nós vamos nos chocar; isso significa que nós podemos argumentar, duvidar uns dos outros, oferecer alternativas. Significa que eu posso me sentir tola ou despreparada. Que ao invés de me cegar enchendo-me de instruções, nós examinaremos escolhas no calor dos ensaios, através da repetição, do teste e pelo erro. Eu percebi que os artistas de teatro alemães tendem a trabalhar muito com auseinandersetzung, que começa débil mas pode criar violentas produções. Os americanos são muito concernentes aos acordos, que podem criar uma arte sem profundidade.

As palavras neste ensaio são mais fáceis de serem escritas do que praticadas em ensaios. Em momentos de confrontação com terror, desorientação e dificuldade, a maioria de nós quer dizer que já é noite e ir para casa. Esses pensamentos são elaborados como reflexos e noções de ajuda que nos dão outras perspectivas, para nos ajudar a trabalhar com mais fé e coragem. Eu gostaria de terminar com uma citação de Brian Swimme:

De que forma podemos expressar sentimentos mas justamente pelo aprofundamento neles? Como podemos capturar o mistério da angústia sem que nos tornemos alguém angustiado? Shakespeare viveu sua vida, atordoado pela sua majestade, e em sua escrita tentou apreender o que ele sentia, tentou capturar essa paixão de forma simbólica. Feito isca pela intensidade de sua vida, ele representou esta intensidade em linguagem. E por quê? Porque a beleza o atordoava. Porque a alma não pode confinar tais sentimentos.

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