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terça-feira, 16 de março de 2010

Adaptando-se...

Terminei o processo de adaptação em poucos dias. O texto é o mesmo mas é outro. Sinto que as principais mudanças dizem respeito à agilidade pela qual as personagens parecem se mover. Movem-se com pressa, mas ainda são seres em perdição. Dizem isso, fazem aquilo, mas voltam a esperar Godot que, de súbito, se esvái em novo jogo.

O que se perde, então, sobretudo, são as excessivas indagações. Não há tantos “o quê?” como resposta a toda e qualquer fala. O entendimento ocorre, ele é direto e rápido. A questão é: e o que se faz agora que entendemos? Continua-se perdido. Assim como quando se encontra contente.

Prova dessa aceleração, desse tempo vertiginoso, é o corte feito no término do texto, quando o MENINO aparece. Nessa chatice lenta de perguntar e responder, o menino acaba interrompendo VLADIMIR e dando seu texto. Alguns trechos nos quais fica evidente isso:

MENINO – Senhor Albert?
VLADIMIR – Está falando com ele.
ESTRAGON – O que você quer?
MENINO – É o senhor Godot...
[...]
ESTRAGON – Que mentirada! Fale a verdade!
MENINO – Mas é verdade, senhor.
VLADIMIR – Quer deixar o menino em paz. Qual é o seu problema? O que há com você?
ESTRAGON – Sou infeliz.
VLADIMIR – Não brinque! Faz tempo?
ESTRAGON – Tinha esquecido.
MENINO – O senhor Godot...
VLADIMIR – Já vi você antes, não é?
[...]
VLADIMIR – É a primeira vez que vem?
MENINO – O senhor Godot mandou dizer que não virá hoje mas virá amanhã com certeza.
VLADIMIR – Só isso?
MENINO – Só, senhor.
VLADIMIR – Você trabalha para o senhor Godot?
MENINO – Cuido das cabras, senhor.
[...]
VLADIMIR – Ele usa barba, o senhor Godot?
MENINO – Acho que é branca, senhor.
VLADIMIR – Misericórdia.
MENINO – O que eu digo ao senhor Godot, senhor?

É nítida uma reverência a questões do tempo. Mas nesta adaptação, optei por não dar tanta importância ao “ontem” nem ao “amanhã”. Perde-se um pouco desse foco porque as coisas se superam com estranha agilidade e nos puxam para o agora. Não dá tempo para resmungar demais. Se foi ontem ou amanhã não importa. Importa ser naquele momento. Importa representar neste agora. É como diz VLADIMIR:

VLADIMIR – Não percamos tempo com palavras vazias. Façamos alguma coisa, enquanto há chance! Não é todo dia que precisam de nós. Ainda que não seja exatamente de nós. Outros dariam conta do recado, tão bem quanto, senão melhor. O apelo que ouvimos se dirige antes a toda a humanidade. Mas neste lugar, neste momento, a humanidade somos nós, queiramos ou não. Aproveitemos enquanto é tempo. Representar dignamente, uma única vez que seja, a espécie a que estamos desgraçadamente atados pelo destino cruel. O que me diz? Claro que, avaliando os prós e os contras, de cabeça fria, não chegamos a desmerecer a espécie. Veja o tigre, que se precipita em socorro de seus congêneres, sem a menor hesitação. Ou foge, ou salva sua pele, embrenhando-se no meio da mata. Mas não é esse o xis da questão. O que estamos fazendo aqui, essa é a questão. Foi-nos dada uma oportunidade de descobrir. Sim, dentro desta imensa confusão, apenas uma coisa está clara: estamos esperando que Godot venha.

Ele está falando de representar a si mesmo, o personagem. A atriz com esse texto na boca dizendo ter que representar dignamente seu personagem. A referência ao espectador, essa linda noção de humanidade. O xis da questão é a oportunidade. Foi-nos dada uma oportunidade de descobrir. Isso é lindo. É estimulante. É confuso.

A adaptação se fechou em 29 páginas. Creio que seja um tamanho adequado para uma encenação de uma hora. Para por aqui com cortes e modificãções. Esse processo voltará em breve, quando as atrizes colocarem as mãos no texto e o texto na boca.

Em breve...